Crimes atribuídos a “João de Deus” anteriores a 2009 dificilmente serão punidos

Joaquim Reis Martins Cruz

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2007

A Lei 12.015/2009 trouxe significativas mudanças aos crimes até então genericamente denominados crimes contra os costumes, que passaram a ser definidos como “Crimes Contra a Dignidade Sexual” e “Contra a Liberdade Sexual”.
O crime de estupro, por exemplo, antes da referida legislação, exigia a ocorrência de conjunção carnal, aliada à violência ou grave ameaça, para sua efetiva caracterização.
Com o advento da Lei 12.015/09, o artigo 213 do Código Penal passou a ter a seguinte redação:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos
Fácil constatar, portanto, que independentemente da conjunção carnal, a prática de ato libidinoso, desde que existente a violência ou grave ameaça, são suficientes para a consumação do estupro.
A pena cominada ao crime de estupro, antes estabelecida entre quatro a dez anos de reclusão, teve a reprimenda mínima alterada para seis anos e mantida a máxima de dez anos, ressalvadas as hipóteses dos parágrafos primeiro e segundo atrás transcritos.
Importante deixar consignado, para um melhor entendimento, que a legislação penal somente pode retroagir quando beneficia o infrator, jamais para agravar a punição.
Dessa forma, para a acusação de crime de estupro, perpetrado antes da nova legislação, necessária a comprovação de conjunção carnal, decorrente de violência ou grave ameaça.
Mas não é só. Atualmente, os crimes dessa natureza são processados mediante ação pública incondicionada, ou seja, o Ministério Público é o titular da ação penal. Anteriormente, contudo, os crimes sexuais, entre eles o estupro, somente ensejariam o início de ação penal contra o infrator por meio de queixa, com exceção ao delito cometido com abuso de pátrio poder ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.
Era permitida também a intervenção do Ministério Público quando a vítima menor de idade ou seus pais não podiam pagar as despesas do processo e, mesmo assim, era exigida a representação processual.
Além de todas as circunstâncias aqui mencionadas, a apresentação da queixa ou da representação, quando necessária, deveria ser formalizada no prazo de seis meses, a contar do fato ou de conhecimento do fato, sob pena de ocorrer a decadência (perda do direito).
Outros delitos de natureza sexual, previstos pelo Código Penal, antes de 2009, como atentado violento ao pudor e posse sexual mediante fraude, obedeciam ao mesmo modo de procedimento para o início da ação penal contra o criminoso, o que parece não ter acontecido no caso de “João de Deus”, estando os supostos crimes, no meu entendimento, fatalmente alcançados pela decadência ou mesmo pela prescrição.
Com a legislação posterior, além da ampliação do conceito de estupro, novos ilícitos foram introduzidos: estupro de vulnerável, assédio sexual, importunação sexual, violação sexual mediante fraude, entre outros.
Não obstante, deve ser também ser assinalado, por oportuno, que o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgamento, desclassificou uma condenação inicial por crime de estupro para o delito consistente na prática de ato libidinoso, previsto na Lei 13.718/18, que deu nova redação ao artigo 215-A, do Código Penal, a seguir transcrito:
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
É lamentável constatar que a legislação, ao invés de proteger a dignidade da mulher, abranda as condenações de crimes de natureza sexual gravíssimos (aplicando penas insignificantes), pois as normas penais mais benignas sempre retroagem para favorecer os réus, acusados de tais atrocidades.

(Colaboração de Joaquim Reis Martins Cruz, advogado em São Paulo).

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Publicado na edição 10349, de 22 de dezembro de 2018 a 15 de janeiro de 2019.