
Quem é fã da literatura francesa, com destaque para os romancistas, talvez identifique o título desse artigo em alguma obra do século XIX. Para quem não teve e tem contato com essa literatura, dificilmente conseguirá estabelecer qualquer relação. Mas isso não importa. O fato é que eu tomei emprestado o título de uma das obras criadas por um dos maiores escritores franceses de todos os tempos, Honoré de Balzac.
E o fiz porque essa obra é uma das quais Balzac navegou pelos conceitos da ciência de forma relativamente primária, é verdade, mas num esforço descomunal para transformar um simples romance em algo que fosse acessível ao público leigo e pouco grosseiro ao público especializado, como os filósofos naturais e os matemáticos daquela época.
Sobre os costumes franceses
Balzac foi o criador da obra prima denominada “A Comédia Humana”, um conjunto de romances que trata principalmente do cotidiano francês do século XIX. Nascido em 1799 na região provinciana da Touraine, testemunhou acontecimentos históricos decisivos para a França, como a queda de Napoleão e a época da Restauração, caracterizada pelas revoluções, lutas sociais e pelas ambições desmedidas.
Ainda na adolescência Balzac mudou-se para Paris com a família e começou a experimentar as provações da capital que anos depois viria a descrever pormenorizadamente, com riqueza inigualável. A Paris de Balzac não lembra em nada a cidade das luzes de hoje. Era cheia de lama com esgotos precários, muitas vezes correndo a céu aberto. Os seus habitantes eram classificados socialmente pela cor dos sapatos: os de menor poder, que literalmente pisavam na lama, conservavam o tom avermelhado em seus sapatos; já os de maior poder, que tinham o privilégio das carruagens, conseguiam mantê-los quase limpos.
Balzac se destacou escrevendo romances que normalmente exploravam dois aspectos principais: a face urbana da cidade e a profundeza de sua organização social. Romances como “O pai Goriot”, “A prima Bette” e “Ilusões Perdidas” são alguns dos oitenta títulos que ele criou até a sua morte em 1850.
Pelas cercanias da ciência
Se existe o ditado de que todo grande escritor é antes um grande leitor, Balzac foi o grande exemplo. Pelas letras dos naturalistas como Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Georges Cuvier ele acompanhou os debates científicos de sua época, os quais contemplavam temas como evolução, criacionismo, frenologia e fisiognomonia.
São perceptíveis nos romances que compõem “A Comédia Humana”, as principais ideias que povoaram as mentes científicas daquele tempo. Um exemplo explícito era a personagem mamãe Vauquer, do romance “O pai Goriot”, uma fisiognomonista que deduzia o temperamento e a personalidade das pessoas com base somente em seus aspectos físicos. Hoje essa prática está completamente desvinculada da ciência, chegando até a ser racista. Mas na época era altamente cultuada e reconhecida.
O poder da alquimia
O grande físico Isaac Newton, a despeito de sua incontestável contribuição para a física moderna, foi um tácito estudioso da alquimia. Como ele, muitos outros físicos, químicos, filósofos e naturalistas também cultivaram essa pseudociência que virara febre no século XIX.
Balzac, embora apenas um curioso sobre o assunto, decidiu empenhar-se num romance que mesclasse elementos da química e da alquimia. Foi um trabalho hercúleo, como confessara tempos depois. “A procura do absoluto” custara-lhe cem noites.
Ele realmente se dispôs a aprender a química. Procurou os astrônomos Paul Auguste Ernest Laugier e Dominique François Jean Arago que lhe indicaram a leitura do “Tratado de química” de Jöns Jacob Berzelius, uma das obras mais completas sobre o assunto na ocasião.
O resultado dessa maratona em quantidade foi estrondoso: 400 páginas. Quanto à qualidade, críticos como Charles-Augustin Sainte-Beuve não deixaram de desmerecê-lo, alegando a sua confusão em misturar a química e a alquimia displicentemente.
Hoje provavelmente os olhos críticos sobre essa obra de Balzac não são tão ferinos quanto antes, pois como diz o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, Balzac não criou nem um conto de fadas e nem uma ficção científica; criou um romance científico, estilo que certamente agregou valores às mentes da sociedade francesa do século XIX.
Publicado na edição nº 10148, de 6 e 7 de julho de 2017.