Antônio Carlos Álvares da Silva
Já tratei desse tema anteriormente. Sobre outro enfoque, o assunto virou polêmica. Trata-se da necessidade de autorização do personagem, para a publicação de sua biografia. Fundado no direito à liberdade de expressão, os escritores querem a dispensa dessa autorização, enquanto o biografado alega o direito à privacidade, para impedir a publicação de relatos de sua história, que não quer tornar públicos. A polêmica virou notícia por envolver personalidades famosas. Começou, pela recusa do cantor Roberto Carlos, para a publicação de sua biografia. Logo, apoiaram sua posição Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan e outros ídolos dos brasileiros.
Do lado contrário, estão os escritores e todos profissionais da imprensa e da TV. Como existe um artigo do Código Civil, exigindo a autorização, está em curso ação no Supremo Tribunal, tentando anular esse artigo. O argumento: Qualquer mentira, ou excesso da biografia poderá ser objeto de reclamação do prejudicado nos tribunais. Como colunista amador, minha tendência é privilegiar a liberdade de expressão. Porém, olhando o passado, sou obrigado a admitir, que a questão não é tão simples assim.
Muitas vezes, para tornar sua obra mais bem aceita pelo público, o escritor se vale da imaginação e da fantasia, para criar uma versão satírica, ou superficial da vida do biografado, seja esquecendo aspectos positivos de sua personalidade, seja ressaltando e aumentando fatos ridículos, que depreciam, menosprezam e aviltam sua vida. Não estou me referindo, a qualquer biografia atual, nem a seus autores. Prefiro usar o exemplo de um biografado da nossa história já morto e esquecido: Dom João VI, rei de Portugal. Fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte, que haviam invadido Portugal, fugiu para o Brasil em 1808. Aqui ficou até 1822, exercendo grande influência em nossa história. Já há alguns anos, sobre essa estada no Brasil, uma cineasta brasileira fez um filme satírico, onde retrata Dom João VI e sua mulher Carlota Joaquina, destacando aspectos burlescos de suas vidas cotidianas e esquecendo outros aspectos, que tiveram grande importância na história nacional. Esse filme é antigo e não me lembro bem de todo relato. Mas, o que me restou na memória foi o seguinte: Dom João VI é apresentado como pessoa medíocre, ignorante e embotado mentalmente. Passava a vida, comendo e dormindo. Gostava de se empanturrar de frango assado e quitutes, enquanto sua mulher praticava sua ninfomania, se entregando a todos os serviçais do palácio. Passados quase 200 anos, fica difícil confirmar ou desmentir esses aspectos domésticos da vida do casal, que exibem Dom João, como glutão estúpido e sua mulher, como uma devassa insaciável. A cineasta não está sozinha nessa visão. Depois da independência, virou moda debochar dos colonizadores e dos dois imperadores brasileiros. Mais recentemente, outros puseram a realidade em seu devido lugar. Nesse quadro, o destaque está sendo o historiador Laurentino Gomes. Ele escreveu 3 livros: 1808-1822 e 1889. No primeiro, retrata Dom João VI, como pessoa arguta e grande estrategista. Enquanto estava em Portugal procurou manter a maioria dos brasileiros no analfabetismo e na ignorância, como meio de evitar o aparecimento de uma elite, com a ideia da independência, que já corria em toda a colônia espanhola da América do Sul. Quando veio para o Brasil, em 1808, percebeu que a independência era inexorável. Viria de qualquer modo. Mudou radicalmente de posição. Passou ele próprio a incentivar o aparecimento dessa elite. Criou a imprensa e fomentou a economia local, criando um banco e estimulando a construção de ferrovias. Trouxe para o Rio de Janeiro um grande grupo de artistas e intelectuais. Planejou, que a elite daí nascida tivesse boa relação com a família real e seu filho, Dom Pedro, para que ele liderasse a proclamação da independência, como viria acontecer em 1822.
Ao mesmo tempo, combateu o aparecimento de elites regionais, para impedir que elas fragmentassem a integridade do território brasileiro, como estava acontecendo na colônia espanhola da América do Sul. Aliás, sua mulher Carlota Joaquina era filha do rei da Espanha e teve o sonho de incorporar alguns antigos territórios da colônia espanhola no território. Especialmente o Uruguai e a Argentina. O Uruguai chegou a ser anexado, com o nome de Província Cisplatina. Porém, Dom João VI, pressentindo, que essa anexação poderia causar ambição dos outros países recém independentes sobre partes de nosso território, preferiu defender a integridade do território brasileiro, o que acabou acontecendo. Então, aí estão duas versões conflitantes sobre a vida de Dom João VI. Em qual acreditar? Bom, existe o ditado, que Deus tudo pode, menos alterar o passado. Para contornar essa limitação, ele inventou os historiadores e os biógrafos. E tem para todos os gostos!
(Colaboração de Antônio Carlos Álvares da Silva, advogado bebedourense).
Publicado na edição nº 9632, dos dias 7, 8 e 9 de dezembro de 2013.