Outro dia, almoçando com a família em uma praça de alimentação, me deparei com uma cena insólita, mas que tem se tornado cotidianamente mais familiar. Na mesa ao lado estava sentada uma mãe absorta, perdida em pensamentos, com a filha ao colo, focadíssima no celular que segurava com as duas mãos. Em determinado momento parece ter chegado uma mensagem que trouxe a mãe de volta à dura realidade. Ela, com jeitinho e em um rápido movimento, tentou visualizar o recado, mas foi frontalmente impedida pela filha que protestou aos berros, chegando a estapear ligeiramente a mãe. Ela, a mãe, obviamente desistiu de sua intenção e voltou à sua longínqua abstração. Já a filha retomou sua determinação perante a telinha. Tudo resolvido!
Em um outro episódio, este em uma pizzaria, sentada nas vizinhanças estava uma família relativamente grande, com pelo menos oito pessoas entre avós, pais, filhos e netos. Ali o silêncio reinava quase que absoluto, cedendo total espaço para os celulares. Em determinado momento, as pizzas chegaram e houve uma pequena e breve agitação, para não dizer, comemoração. Todos então deixaram os seus indigestos aparatos eletrônicos de lado para atacarem efusivamente as afamadas fatias, com exceção de um dos netos. Para ele, o cheiro das cebolas e do queijo derretido, a movimentação e a alegria da família passaram-lhe completamente despercebidos. Ele realmente estava absorvido pela jornada no celular que mal escutou a mãe lhe chamar a atenção. Quando a mãe percebeu que o filho continuava ávido na telinha, ela alterou o tom de voz e literalmente lhe tirou o celular, ato esse que veio acompanhado de um grito profundo, estridente e longo do menino, como se alguém lhe tivesse quebrado a perna ou o braço com fratura exposta e colocado gasolina para desinfetar. Nem o pai, saindo de sua cadeira para ter uma conversa ao pé-de-ouvido com o menino conseguiu amenizar a cena de desespero. Demorou um tempo até que a situação se acalmasse.
O cérebro recrutado
Adultos que passam muito tempo defronte a tela de um celular recebendo uma enorme rajada de rápidos estímulos pode desenvolver uma dependência. A dopamina liberada pelos comentários, curtidas e atualizações geram uma sensação de prazer que muitas vezes vicia, forçando o indivíduo a repetir o processo com mais frequência num ciclo sem fim.
Para as crianças, além da dependência, podem surgir distúrbios mentais talvez até irreversíveis. Cristiano Nabuco, PhD em psicologia clínica de dependências tecnológicas e coordenador de uma unidade que atende pacientes nas condições de dependência, afirma que as novas gerações estão experimentando aquilo que denomina de “autismo digital”.
Embora sem uma chancela científica, muitas famílias parecem estar experimentando cenários dessa possível natureza, os quais evidenciam características muito semelhantes ao autismo depois que a criança passa muito tempo em frente à tela de um celular ou tablet. Entre outras, se destacam a dificuldade de interação social, problemas de comunicação, padrões restritos e repetitivos de comportamentos, desconforto a determinados estímulos sensoriais e dificuldades na regulação emociona
O reflexo condicionado
Se por um lado, o cérebro das pessoas está sendo treinado para responder à bomba de estímulos rápidos, bem como a cortejar a dinâmica das notificações, por outro, ele começa a ficar distante da capacidade de concentração e do raciocínio mais denso e profundo.
Para um cérebro assim, passar os olhos por um texto com duas laudas em poucos minutos, se torna um desafio hercúleo, se não for rejeitado ou descartado de forma imediata. Que dirá executar sobre o seu conteúdo uma análise crítica. Nada, mas nada mesmo além de estímulos de pouquíssimos segundos vai satisfazer o novo enquadramento ao qual aquela estrutura cerebral está encaixada e literalmente viciada.
Prezado leitor, não vai demorar muito – e já existem inúmeros artigos científicos dando conta disso – para a humanidade ser comparada aos cães de Pavlov (Ivan Pavlov, 1849 – 1936), que ao ouvir a sineta tocar vai salivar desmedidamente sem mesmo ter o direito a consumir a carne, como simples animais bem adestrados.
Será que um povo babão teria condições de exercer a plena cidadania, reivindicar seus direitos e promover uma revolução para o próprio bem?
Caso haja interesse em entender um pouco mais sobre o uso do celular como novo vício da era moderna, não deixe de passar o olho por esse artigo https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/02/13/celular-e-o-novo-cigarro-como-o-cerebro-reage-as-notificacoes-de-apps-e-por-que-elas-viciam-tanto.ghtml.
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.826, quarta, quinta e sexta-feira, 6, 7 e 8 de março de2024