Nesse ano de 2023 minha filha iniciou o terceiro ano de medicina. Entre ligas, observações de cirurgias e eventos de voluntariado para atendimento à população, para citar apenas alguns, sua jornada está tomando corpo, às vezes de forma amena, às vezes de forma avassaladora. Para dizer a verdade, mais avassaladora do que amena.
De certa forma, o curso de medicina se apresenta como um tsunami que varre a vida do aluno, oferecendo um conjunto quase infinito de informações, com o qual ele, desnorteado da vida, tem que aprender a absorver a maior parte, o mais rápido possível e da maneira mais efetiva.
Às vezes ela me mostra uma imagem contendo partes da estrutura cerebral que mais se parecem com mapas do inferno e me pergunta como é que ela vai guardar aquele mundaréu de informações. Nessa hora todos os grilos da vizinhança se manifestam, pois não tenho a menor ideia a oferecer e me sinto abençoado por ter escolhido a tecnologia da informação como perfil profissional.
E sendo uma menina, não fossem somente os desafios intrínsecos à dinâmica do aprendizado, por vezes ela se defronta com os desafios ligados aos estereótipos sexistas e de discriminação de gênero, ainda muito comuns em nossa sociedade do século XXI. Para quem tem interesse no tema, talvez valha a pena passar os olhos nesse artigo https://blog.iclinic.com.br/desafios-das-mulheres-na-medicina/.
Revisitando a história
Imagine você, querido leitor, se hoje o preconceito e a intolerância costumam se apresentar de forma direta e exposta, como seria para uma menina – estudante de medicina – enfrentá-los em pleno século XIX, ainda na época do Brasil império, em que a mulher não tinha voz ativa dentro de casa, quiçá fora dela.
Coincidentemente, neste 2023 comemora-se o aniversário de 130 anos de formatura de uma das grandes pioneiras da medicina no Brasil – Francisca Praguer Fróes. Baiana de Cachoeira, nasceu em 1872 às margens do rio Paraguaçu e teve uma imensa sorte de conviver com uma educação diferenciada daquela tradicional oferecida às meninas na época, a qual se baseava na fé cristã para formação de boas esposas. Sendo sua mãe uma defensora dos direitos femininos, Francisca encontrou um ambiente muito favorável aos estudos e à formação profissional. Tanto que aos 16 já ingressava na Faculdade de Medicina da Bahia, a faculdade de medicina mais antiga do Brasil.
Uma jornada épica
Formando-se em 1888, iniciou uma jornada profissional admirável, tanto no trato da saúde humana, bem como na defesa da saúde da mulher. Especializou-se em obstetrícia e ginecologia e começou a clinicar naquela que seria denominada Maternidade Climério de Oliveira em 1911.
Francisca possuía uma clientela pouco convencional, formada principalmente por mulheres das camadas desprivilegiadas da população, como engomadeiras, cozinheiras, passadeiras, operárias, desempregadas vivendo em situação de precariedade. Boa parte chegava à clinica para dar a luz em condições de extrema pobreza e miséria.
Observo ao leitor que, na época, as mulheres das classes média e alta davam à luz em casa. Sair dali era literalmente apavorante, destinado somente às pessoas desclassificadas socialmente.
E não bastasse a militância assertiva em prol da saúde da mulher, Francisca adentrou para a militância política, a qual defendia o pleno exercício da cidadania feminina. Veio a público, em artigos veiculados pela mídia regional e nacional, para manifestar-se contra a dominação masculina e o sexismo arraigado, e a favor do voto e dos direitos da mulher. Talvez um dos temas mais polêmicos defendidos por ela tenha sido o divórcio, refutado de maneira veemente pela igreja, pelas próprias feministas católicas e pelos legisladores.
Francisca, que morreu com apenas 59 anos de idade, nos deixou mais do que um simples legado de resistência a uma cultura parasitária e nefasta baseada na hegemonia masculina. Ela criou verdadeiras fissuras no imaginário popular que contribuíram sobremaneira para recolocar a posição da mulher em plenas condições de igualdade em relação ao homem dentro da sociedade brasileira. Uma vida difícil, cheia de desafios, mas muito bem vivida como filha, esposa, mãe, médica e ativista.
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.805, quarta, quinta e sexta-feira, 29 e 30 de novembro e 1º de dezembro de 2023