A ciência, a despeito de sua importância para a evolução humana, não nasceu em berço esplêndido tão pouco trilhou caminhos retilíneos e límpidos. Também não ofereceu um ombro amigo aos necessitados de fé e pouco serviu para tratar a alma daqueles que deixaram a dita vida terrena.
Mas esteve sempre envolvida em polêmicas e controvérsias, desafiando o bom senso e a inteligência de gerações de fiéis que, ou a viam como a única salvação para os homens, ou a viam como o próprio demônio, que deveria ser queimada até a morte, extinta para sempre.
Para o bem da humanidade, o tempo fluiu e a ciência sobreviveu. Melhor, evoluiu, conforme foram sendo exorcizadas a escuridão e a ignorância reinantes no mundo. Muitos foram os que sofreram nas mãos da intolerância, que pagaram com as próprias vidas o preço de uma ciência evoluída. Lembremos rapidamente de alguns protagonistas dessa conturbada história.
Os arautos do alvorecer
A luz das fogueiras que cegava a sociedade da idade média, também servia para iluminar a prepotência daqueles que queriam manter os dogmas religiosos a todo custo. Embora tenha sido uma época em que mais fogueiras tenham sido acesas, foi uma época em que a ciência, os cientistas e toda a humanidade viveram em quase completa escuridão. Poucos se aventuravam em discordar da Santa Igreja, e os que o faziam, frequentemente não se davam bem.
Nicolau Copérnico (1473 – 1543), matemático polonês, sabia disso e só permitiu publicar o seu livro “As Revoluções dos Orbes Celestes” sobre a teoria heliocêntrica, em seu leito de morte. Vale lembrar que a igreja da época defendia a teoria escolástica de um mundo certinho em que a Terra era o centro do Universo e tudo a sua volta girava em torno dela. O heliocentrismo desbancava essa idéia um tanto egocêntrica, e defendê-la, significava estar do lado do diabo.
Giordano Bruno (1548 – 1600), matemático italiano, talvez não tivesse a mesma perspicácia de Copérnico ou talvez tenha sido mais idealista ao enfrentar de peito aberto a inquisição, defendendo e ensinando o heliocentrismo. Resultado: morreu queimado na fogueira como herege.
Provavelmente o mais famoso condenado da inquisição tenha sido um outro matemático italiano, Galileu Galilei (1564 – 1642). Embora a história desse personagem esteja ligada não só à defesa do heliocentrismo, mas também à contraposição do milagre eucarístico da transubstanciação, Galileu conseguiu escapar da fogueira para terminar os seus dias preso em sua vila em Arcetri, perto de Florença na Itália, depois de abjurar as teorias heréticas perante a Santa Inquisição.
A ciência sobreviveu
O iluminismo no século XVIII surgiu para ofuscar de vez as luzes do obscurantismo forjadas na idade média. O heliocentrismo, que já estava praticamente sacramentado, era aceito pela comunidade científica embora resquícios da tradição escolástica ainda sobrevivessem ao tempo. Se a Terra – morada suprema do homem – deixava de ser o centro do Universo, pelo menos ele (o homem) ainda reinava absoluto perante os outros animais e a natureza.
Foi nesse contexto que surgiu Charles Robert Darwin (1809 – 1882), evolucionista inglês, criador da Teoria da Seleção Natural. Darwin dizia que de uma célula bacteriana podia se chegar a organismos bem complexos como formigas, pássaros e o próprio homem. E mais, que os humanos e os macacos possuíam os mesmos ancestrais.
Charles Darwin levou 20 anos para decidir pela publicação dessa teoria e nesse tempo ele viveu às custas de dores violentas no ventre e na cabeça, isolamentos constantes e banhos de água gelada, um verdadeiro martírio, uma fogueira virtual. Ele sabia das conseqüências em colocar o homem, até então um ser supremo da natureza, num mesmo patamar de importância dos macacos na estrutura geológica.
As fogueiras contemporâneas
Se hoje a inquisição faz parte da história, se as chamas das fogueiras medievais se apagaram e se a sociedade domou relativamente sua ignorância, poderíamos imaginar que fazer ciência hoje em dia tenha ficado mais fácil. Ledo engano! Primeiro, porque há um descaso explícito das autoridades em elaborar uma política de aproveitamento de nossos cientistas, de nossos mestres e doutores; segundo, as verbas destinadas à pesquisa são insuficientes, quando existem; terceiro, das pesquisas realizadas, poucas são aproveitadas e aplicadas – existe ainda uma enorme distância entre a academia e a indústria.
Poderíamos citar vários outros pontos destoantes, mas paramos por aqui para concluir que dessa história desfavorável, há pelo menos um motivo de alegria: a ciência continua a evoluir e a marcar presença inconteste no âmago da sociedade, projetando um equilíbrio indispensável para a sustentabilidade da humanidade e do meio em que vive.
Então, que ela tenha uma vida forte e perene, mesmo que por linhas tortas!
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.812, de sábado a quarta-feira, 13 a 16 de janeiro de 2024