A ciência da ética e da honestidade

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Não é de hoje que observamos em vários tipos de mídia, a apresentação de produtos com um forte apelo científico, como se isso fosse atestar positivamente a qualidade deles. De certa forma quando somos literalmente bombardeados pela magia do marketing e possuímos conhecimentos restritos sobre o assunto, temos a inclinação de nos alinharmos a idéia de que o produto é realmente bom, afinal a ciência o chancela. Nesses casos, a ciência assume papel monolítico, indestrutível e inquestionável, quase como um dogma.

Quem faz ciência sabe que, longe de ser um dogma ou qualquer monolítico poderoso, ela existe para retratar a realidade da melhor maneira possível, sem nenhum tipo de parcialidade ou ideologismo. O fato é que nem sempre quem faz ciência opta pelo caminho da ética e da honestidade. A ambição pelo dinheiro fácil ou pela fama rápida, acaba por conquistar as mentes e corações de muitos cientistas capazes, desvirtuando-os e descaracterizando-os como fiéis representantes da ciência – aquela que preconiza acima de tudo as relevâncias científica e social.

Quantas vidas já se perderam antes que medicamentos problemáticos tivessem sido retirados do mercado? Quantas pessoas se acidentaram antes que fornecedores de produtos potencialmente perigosos se manifestassem por um recall?

O compromisso do cientista para com a sua pesquisa é grande, mas para com a sociedade é infinita.

Os camundongos de Chernobyl

A usina nuclear de Chernobyl na antiga União Soviética se tornou conhecida do mundo quando em 1986, depois de uma sucessão de erros operacionais, o seu reator de número 4 incendiou-se e explodiu lançando ao ar, toneladas de material radioativo que inundaram intensamente a Europa oriental e relativamente a ocidental.

Arriscar um número de vítimas é brincar de adivinhação, tamanha a desorganização e desinformação sobre os detalhes do acidente que até hoje ainda cultiva os rescaldos. Logo após o ocorrido, a cidade de Pripyat foi evacuada e hoje continua vazia de pessoas. A natureza lá prosperou: árvores já tomam conta das ruas e espécies de animais se reproduzem intensamente.

A zona de exclusão determinada pelo governo da Ucrânia, além de dar uma mãozinha à natureza, está servindo de campo de estudo para pesquisadores, principalmente aqueles envolvidos com a biologia e a energia nuclear.

Ronald K. Chesser e Robert J. Baker são professores de ciências biológicas nos EUA e por anos consecutivos estiveram estudando os efeitos da radiação na zona de exclusão na Ucrânia, quase ao lado da usina de Chernobyl. Em 1996 publicaram longo artigo na revista Nature na qual concluíam que os ratos silvestres que viviam em Chernobyl possuíam uma taxa elevada de mutação genética.

A informação era muito importante porque declarava explicitamente como os efeitos de um acidente nuclear impactava diretamente a natureza. Além disso, poderia alimentar resistências aos países interessados em construir novas usinas nucleares durante um processo de diversificação de suas matrizes energéticas, bem como induzir a classe científica a repensar a energia nuclear como alternativa à futura escassez do petróleo.

Bem, poderia, mas não o fez. Eu explico!

O caminho seguro da retratação

Pouco tempo depois da publicação do artigo, Chesser e Baker repetiram o experimento utilizando tecnologia mais sofisticada e chegaram a conclusões contrárias às que foram publicadas. Observaram que haviam cometido um grande equívoco e fizeram uma retratação dizendo que em Chernobyl havia quatro espécies de camundongos e não de animais geneticamente modificados. A radiação do acidente, neste específico caso, não era a vilã da história.

Para nós simples mortais, a retratação não teve diretamente nenhuma influência, mas para os pesquisadores Chesser e Baker e seus pares cientistas, várias lições foram aprendidas: 1) belas teorias são sempre destruídas por fatos; 2) o progresso verdadeiro de uma pesquisa às vezes requer mudanças de rumo; 3) não se pode ignorar a história; 4) é sempre prudente manter a humildade; 5) cientistas devem ser comprometidos com a verdade.

Chesser e Baker escolheram e trilharam o caminho do bom senso e da ética ao se retratarem. Pontos para eles e pontos para a ciência, afinal, ela – a ciência – não é um processo de criar certezas, mas sim, de construir conhecimento estruturado, objetivo e compartilhado.

E para o querido leitor que aprecia uma boa história contada, aqui fica uma sugestão lúdica sobre o poder da honestidade: https://www.youtube.com/watch?v=2TRh3Zf5-TA.

Publicado na edição 10.926, de sábado a terça-feira, 31 de maio, 1º a 3 de junho de 2025 – Ano 100