
Quem viveu no Brasil entre o seu descobrimento e a chegada da família real em 1808, precisava recorrer aos deuses ou às fórmulas mágicas naturais caso adoecesse. Isso porque não havia minimamente uma infraestrutura dedicada à saúde pública. Médicos por aqui eram raríssimos e os que aportavam no país sequer tinham formação acadêmica; apenas dois anos de estudos práticos no Hospital de Todos os Santos de Lisboa os habilitavam a fazer curativos, cirurgias, sangrias e amputações. Era com isso que a população local podia contar.
Com a chegada da família real, o país tomou rumo novo em relação à saúde. Em ato contínuo à chegada, o governo imperial criou duas faculdades de medicina, a de Salvador e a do Rio de Janeiro, ambas em 1808. Médicos de Portugal também começaram a se deslocar para a colônia, já que havia, além dos desafios comuns à profissão, incentivos como distribuição de terras, enriquecimento e valorização social.
Assim, paulatinamente, começou-se a formar uma estrutura mínima de saúde nacional direcionada principalmente aos senhores escravocratas para que tivessem condições de cuidar de seus escravos, cuja mão-de-obra alavancava a mineração do ouro e posteriormente a produção do açúcar.
Os manuais médicos do século XVIII
Diante da carência de especialistas em saúde no país e das precárias situações de higiene e alimentação em que viviam a população trabalhadora (leia-se escravos), alguns cirurgiões decidiram realizar contribuições além de suas respectivas atuações profissionais. Escreveram pequenos manuais que davam informações práticas com instruções aos senhores acerca dos tratamentos médicos disponíveis na época. Era uma espécie de ‘cure você mesmo a doença de seu escravo’.
Três desses cirurgiões se destacaram na escrita: Luís Gomes Ferreira publicou o “Erário mineral” em 1735; João Cardoso de Miranda escreveu “Relação cirúrgica médica” em 1747; e José Antonio Mendes escreveu “Governo de mineiros mui necessário … pela dilação dos remédios se fazem incuráveis e as mais das vezes mortais”, em 1770.
Mendes, cujo livro de 158 páginas foi republicado no início de 2013 pelo Arquivo Público Mineiro, contemplava instruções objetivas de como tratar ferimentos em geral, além de doenças como a erisipela e escorbuto, tumores, edemas, carbúnculo e doenças intestinais. Prescrevia elementos como os sais de mercúrio, antimônio ou arsênico para os tratamentos, completamente temerários na medicina moderna. Paralelamente investigou a eficácia das plantas nativas na cura das doenças, principalmente as de cunho tropical.
A saúde contemporânea
O Brasil, durante os séculos subseqüentes à chegada da família real, assistiu a um grande e paulatino processo de transformação da área médica que o permitiu deixar um cenário de ausência total de saúde para uma situação minimamente capaz de satisfazer a sua população em suas necessidades mais básicas.
O país evoluiu não e tão somente na questão do atendimento, mas principalmente na formação de profissionais qualificados que puderam fazer e fazem da medicina uma ciência de grande importância nacional.
É fato que, pautada em uma democracia de caráter duvidoso, parte da população brasileira ainda definha em filas de espera, nos cantos sujos de complexos hospitalares, no menosprezo absoluto dos governantes e nos desvios vergonhosos de verbas. Se no Brasil imperial havia uma preocupação em se manter a mão-de-obra escrava íntegra para trabalhar de sol a sol, hoje talvez nem haja tal preocupação, tamanho o descaso. O cidadão honesto que paga em dia uma verdadeira fortuna em impostos, sequer consegue enxergar o retorno devido. Para eles a saúde brasileira ainda permanece como nos tempos do descobrimento, em um vácuo absoluto.
Onde, afinal, está o progresso para essa gente?
Publicado na edição nº 9894, dos dias de 24 e 25 de setembro de 2015.