
As reformas na região portuária do Rio de Janeiro decorrentes das olimpíadas que vão acontecer nesse ano, têm aberto inúmeras perspectivas históricas sobre o Brasil império. Fragmentos humanos encontrados em 2011 próximos ao obelisco do Cais da Imperatriz estão fazendo emergir reminiscências de uma era, hoje ignorada, que trouxe muito sofrimento para a população africana que aqui chegava sob a égide do regime escravocrata. Pelo antigo Cais do Valongo passaram em torno de 1 milhão de escravos vindos de várias partes da África, muitos dos quais mal conseguiam sobreviver nos primeiros dois meses após o desembarque. Para os que morriam, a sorte pequena de serem enterrados como animais, destituídos de qualquer rito de sepultamento; para os que viviam, a sorte ainda menor de uma vida cheia de sofrimento e dor, ausência total de qualquer sentido civilizatório.
Estudando o passado
Uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), diante desses achados arqueológicos e de outras fontes de pesquisa, tem tentado decifrar algumas características da saúde da população do Rio de Janeiro que viveu à época imperial. Os estudos abarcam evidências coletadas em três cemitérios da cidade: o dos Novos Pretos, o da Praça XV, e o cemitério da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Todos são cemitérios que receberam no passado restos mortais de pessoas de diferentes classes sociais, o que permitiu à equipe entender melhor como viviam e morriam os moradores da cidade. O cemitério dos Novos Pretos, localizado na região portuária, era destinado exclusivamente a manter os corpos dos escravos. Já o da Praça XV, no centro do Rio, destinava-se a receber restos mortais de todas as classes sociais. Por fim, no cemitério do Carmo, também no centro, eram enterrados somente os mais abastados. Desses estudos dois resultados já emergiram: um que dá conta das doenças parasitárias que afligiam a população carioca e outro que trata das origens da tuberculose dos africanos.
A saúde carioca por um fio
A análise em amostras arqueológicas coletadas de diferentes corpos no cemitério da Praça XV revelou que em 80% delas existia a presença de infecção parasitária intestinal, principalmente de vermes e protozoários. O verme mais comum encontrado foi o Trichuris, de corpo alongado que chega a medir 4 centímetros de comprimento. Encontraram também ovos de tênia e de lombriga.
Já nas amostras de corpos do cemitério do Carmo a taxa de infecção foi bem menor, em torno de 12%, mas com um fato interessante: a variedade de parasitas encontrada ali foi igual à obtida na Praça XV, o que mostra que mesmo os ricos, protegidos por melhores condições sanitárias, estavam à mercê das doenças parasitárias.
Origem duvidosa
Um outro foco dos estudos que tratou a tuberculose, apresentou um cenário inverso do parasitário. Das amostras coletadas no Carmo (população abastada), mais de 50% apresentavam material genético da bactéria Mycobacterium tuberculosis. Já entre os africanos dos Novos Pretos, a incidência mal chegava aos 25%.
De fato as estatísticas não surpreendem. Pelo contrário, corroboram com o cenário histórico de que os europeus tiveram grande responsabilidade sobre o espalhamento dessa doença pelo Novo Mundo.
Mas, a ideia de que os africanos se contaminavam somente ao chegar ao continente e tomar contato com os europeus que aqui viviam, também não parece ser de todo verdade, principalmente considerando que os escravos que adoeciam e morriam, eram enterrados na região portuária e dali sequer saiam. Certamente já chegavam contaminados, ou por contato com europeus no próprio continente africano ou por cepas mais antigas que já circulavam por lá.
E justamente para entender melhor esse cenário de contaminação dos escravos pela tuberculose que a equipe Fiocruz pretende aplicar testes moleculares que permitam comparar o DNA dos africanos dos Novos Pretos com estruturas bacterianas mais modernas, desafio para os próximos anos.
Publicado na edição nº 9998, de 16 e 17 de junho de 2016.