
Observa-se que dentre poucas décadas a água doce e potável poderá ser o líquido mais caro e precioso da Terra, mais até do que o próprio petróleo, hoje motivo de disputas entre nações. Para o petróleo já existem vários candidatos substitutos. Para a água ainda não se descobriu nenhum.
A preocupação latente e atual com a frágil questão da água não está inserida na consciência da população, embora campanhas veiculadas pela mídia se façam cada vez mais presentes aos nossos olhos. Ainda é comum observar o desperdício do precioso líquido na limpeza de calçadas, de carros, higiene pessoal, enfim, no uso doméstico sem racionalidade. Por outro lado, o rótulo de país subdesenvolvido caberia muito melhor ao Brasil quando números relativos à sua infraestrutura são apresentados: mais de 90% dos esgotos domésticos e cerca de 70% dos efluentes industriais não tratados são lançados nos corpos d’água. Na capital paulista, os rios Tietê e Pinheiros que o digam.
Luz no fim do túnel?
Se o problema da água se torna agudo com o passar do tempo, as soluções para ele vão aflorando à medida que instituições públicas e privadas recebem mais verbas e desenvolvem mais pesquisas. Uma das soluções que vem ganhando destaque nos meios científicos por sua abrangência e aplicabilidade refere-se ao reuso da água. Sabe-se, por exemplo, que o setor agrícola é um consumidor voraz de água, responsável por 70% do total gasto por todas as atividades de consumo mundiais. Estudos indicam que toda água utilizada na agricultura poderia ser fruto de reuso.
Na verdade, qualquer água pode ser reutilizada sem danos à saúde e ao meio ambiente desde que tratada adequadamente. Para a agricultura, a água proveniente do esgoto doméstico seria a mais viável economicamente, de acordo com pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP), isso porque a água residuária doméstica contém 99% de água e a fração restante é constituída por sólidos orgânicos e inorgânicos facilmente eliminados.
O processo de limpeza
Analogamente aos purificadores domésticos, que possuem um mecanismo de limpeza da água que chega da rua, existe um processo de limpeza da água residuária doméstica executada em três fases para ficar própria para o uso: (1) pré-tratamento, que remove sólidos grosseiros, graxas, gorduras, materiais inertes e uma pequena fração da matéria orgânica; (2) o tratamento secundário para remoção da maior parte de matéria orgânica, de uma parcela dos patógenos e nutrientes; (3) e o terciário, para remoção de patógenos, nutrientes e bioprodutos formados durante o tratamento.
Como recursos de infraestrutura para viabilizar um baixo custo dessas fases de limpeza, os pesquisadores da ESALQ sugerem a utilização de lagoas de estabilização que podem ser de três tipos: lagoas anaeróbias, facultativas e de maturação.
Os casos de sucesso do reuso da água na agricultura ecoam principalmente nos países cuja falta d’água é evidente. A Índia, por exemplo, obteve um aumento na produção agrícola utilizando água residuária na irrigação devido aos nutrientes, principalmente nitrogênio e fósforo, que essas águas possuem. O México é outro exemplo. O uso de esgoto na irrigação da região do Vale de Mesquital fez com que a renda agrícola ali aumentasse de, praticamente zero no início do século passado, a cerca de quatro milhões de dólares por hectare em 1990.
No Brasil, iniciativas tímidas da agroindústria canavieira demonstram o grande potencial de sucesso da reutilização da água no setor agrícola. Corroboradas por estudos, como os da Universidade Federal do Rio Grande do Norte sobre poluição de mananciais e reaproveitamento de efluentes, essas iniciativas tendem a pensar o problema sob aspectos puramente técnicos e científicos, de forma sistematizada e bem planejada, como nos países desenvolvidos. Potencial para tanto o Brasil tem, além é claro, de um vasto universo para estudos e aplicações.
É preciso eliminar o fisiologismo barato disperso nos discursos sobre o meio-ambiente e conceber um conjunto de metas corajosas para que o processo de reuso da água ganhe de fato vida e força perenes. A consciência dessa necessidade premente será a chave para o exercício pleno da cidadania sustentável, tão em falta em nosso país.
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição nº 10441, de 2 a 5 de novembro de 2019.