
Os livros de Medicina do começo do século passado tinham capítulos sobre o Infarto do Miocárdio que eram quase notas de rodapé. Muito pouco se sabia e menos ainda se estudava sobre o assunto. As pessoas morriam muito mais cedo, geralmente de causas infecciosas. Rodolfo Valentino, um dos primeiros pop stars da história do cinema, morreu prematuramente por conta de uma apendicite, em 1926. Hoje teria sido operado e recebido alta hospitalar em dois dias. Com o advento dos antibióticos, as mortes começaram a ser evitadas. A industrialização da alimentação e as mudanças de dietas e de estressores fizeram as doenças vasculares, como os Infartos do Miocárdio e os AVC’s, cada vez mais proeminentes nas estatísticas de morte. Os capítulos sobre eles foram substituídos por tratados e estudos bilionários para evitar a perda de vidas para essas doenças. Quando eu me formei, os cardiologistas eram os caras mais bacanas do hospital.
A partir dos anos setenta, intensificou-se o estudo de características psicológicas que estariam associadas a esse tipo de doença. Na época, foi proposta uma classificação de tipos psicológicos: os tipos A, B e C. Os do tipo A tinham e têm até hoje uma correlação clara com doenças cardíacas: caras estressados, apressados, ambiciosos, explosivos e briguentos, com um perfeccionismo e uma combatividade a serviço da vontade de ganhar dinheiro e poder. Os do tipo C, ao contrário, seriam pessoas mais recolhidas, muitas vezes frustradas e passivamente agressivas, que não tinham objetivos claros para suas vidas e muitas vezes retardavam a solução de problemas fazendo corpo mole ou fugindo das responsabilidades. Estes tendem a culpar os outros e a sociedade por seus problemas e têm dificuldades em assumir o protagonismo de suas vidas e projetos. Havia um CEO de uma grande multinacional americana que promovia anualmente uma demissão de dez por cento da força de trabalho, tentando tirar os tipos C da empresa. Ele mesmo teve uns cinco infartos, então não é difícil presumir sua tipologia. Mas aí o leitor pode me perguntar: e os do tipo B? Se tudo der certo, são a maioria: trabalham em equipe, têm ambição mas não pisam no pescoço de ninguém por isso, têm altos e baixos em motivação, mas mantêm entregas e regularidade nos trabalhos. Mas não exageram em suas ambições nem têm pressa para esmagar adversários.
Estamos vivendo num mundo em que os tipos B, que tentam o equilíbrio entre o fogo excessivo dos tipos A com o gelo glacial dos tipos C, estão entrando em extinção. Vemos os gurus motivacionais e os influenciadores gritando sobre motivação, constância, produtividade. Todo mundo deve se converter a tipo A. E um dos traços do tipo A está bombando nas redes sociais e mídias: a hostilidade. Os algoritmos organizam a sociedade para “nós contra eles”. Vivemos numa loucura suficiente para um sujeito entrar na festa de um desconhecido e matar o aniversariante apenas porque tinha a bandeira do PT e uma imagem de Lula no bolo.
Hostilidade faz mal à saúde: aumenta a pressão arterial, o açúcar no sangue, o consumo de álcool e prejudica a resposta imune. Numa sociedade inflamatória como a nossa, o ódio alimenta a fornalha do medo e da doença. Nossos sistemas de ódio aumentaram na pandemia, quando a quarentena aumentou a sensação de isolamento, perigo e hostilidade. Antes da eleição do ano passado, precisei medicar de maneira incisiva pessoas que estavam persecutórias, desestabilizadas e tomadas pela hostilidade em tempos de eleição e final de ano.
Quando Jesus falava sobre amar seus inimigos, não devia estar falando sobre levar quem você não gosta para uma ilha deserta. Provavelmente, ele estava falando sobre devolver a seus inimigos a característica humana. A tradução atual seria ter compaixão por seus inimigos. Torná-los pessoas, com suas fragilidades e defeitos, e não King Kong’s prontos a lhe devorar.
Existe uma meditação que muito gosto, a Loving Kindness, em que uma parte dela consiste em mandar compaixão e bons votos para uma pessoa que nos tenha feito sofrer. Não é fácil fazer, mas dá um alívio sutil em nossos sistemas de hostilidade. Tem um monge que muito admiro, falecido recentemente, Thich Nhat Hanh, que ensinava: a compaixão é nossa única defesa. Cada vez mais posso constatar como ele estava certo. Compaixão aumenta os do tipo B, equilibrando o Yang daqueles do tipo A e o Yin, do tipo C.
Amar o próximo como a si mesmo significa viver a compaixão por mim e pelo outro. Isso faz bem à saúde e ao planeta.
(Colaboração de Marco Antônio Spinelli, médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro Stress – o coelho de Alice tem sempre muita pressa).
Publicado na edição 10.781, quarta, quinta e sexta-feira, 16, 17 e 18 de agosto de 2023