Dias de fúria

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A trágica história de Fabiane Maria de Jesus correu os quatro cantos do país em 2014. Para quem não se lembra ou não teve contato com os fatos, Fabiane, uma dona de casa, mãe de duas meninas, foi confundida com uma seqüestradora de crianças pela comunidade de Morrinhos no Guarujá e em ato contínuo sofreu um linchamento com toques de crueldade a base de pauladas, pontapés e socos que duraram mais de 30 minutos. Resgatada pela polícia, veio a óbito 36 horas após o crime. Cinco dos participantes do linchamento foram condenados pela justiça e cumprem penas que variam de 20 a 40 anos de prisão.
O caso de Fabiane não é um fato isolado no Brasil. Embora não existam estatísticas criminais que evidenciem objetivamente os linchamentos, dados científicos mostram que nos últimos 60 anos mais de um milhão de brasileiros participou de um ato ou uma tentativa de linchamento, o que evidencia um sintoma de séria enfermidade da sociedade brasileira.

Passos da história
Atos de violência massiva remontam a antiguidade. Fogueira para bruxas e heréticos, apredejamento para pecadores e infiéis e forca para assassinos e estupradores são alguns exemplos da justiça feita pelas próprias mãos quando, em geral, o estado está ausente ou quando se mostra incapaz de manter uma ordem mínima de civilidade entre a população.
No Brasil, o primeiro registro oficial de linchamento ocorreu em 1853, embora sem informações precisas sobre o caso. Anos depois, em 1897, o caso dos Britos ficou famoso no interior de São Paulo, precisamente em Araraquara. Um jornalista e seu tio farmacêutico balearam um coronel que veio a falecer. Foram presos, mas não por muito tempo. À noite familiares e amigos do coronel os retiraram da prisão e realizaram ali mesmo o linchamento de ambos. Ninguém foi preso na ocasião.
Já no século XX, especificamente entre os anos de 1945 e 1998, o número de linchamentos ou tentativas chegou a 2.028 casos, dos quais 1.221 vítimas foram atingidas pela fúria popular a pauladas, pedradas, pontapés e socos, nessa ordem e nessa progressão, de acordo com o sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Universidade de São Paulo. Desses, 64% foram mortos; os demais foram feridos, resgatados em sua maioria pela polícia.

Justiça na hora
Dois anos antes da morte de Fabiane, a polícia civil do Rio de Janeiro havia elaborado um retrato falado de uma mulher acusada de tentar roubar um bebê do colo da mãe no norte daquele estado. Tal retrato acabou sendo divulgado nas redes sociais e rodou o país, mas sem a caracterização original do crime.
A centenas de quilômetros da suposta tentativa do roubo, na comunidade de Morrinhos, bastou alguém conectado às redes confundir e acusar Fabiane, que cegamente parte da comunidade partiu para a solução final – um linchamento presenciado por centenas de adultos e crianças, diante de câmeras de celulares. Sem condições de se defender, sem condições de explicar sua condição de mãe, de dona de casa e de inocência, foi literalmente triturada por uma comunidade enraivecida que nem mesmo sabia o porquê estava tomando tal atitude. Um cenário de total intolerância, beirando o surreal.
Esse fenômeno, embora comum nas grandes cidades, é realizado em nome das pequenas comunidades marginalizadas pela sociedade, cujo cotidiano não supõe previamente regras e normas. No caso de Morrinhos construíram a norma para fazer justiça ali, naquela hora, com as próprias mãos.

Intolerância radical
José de Souza Martins, em seus estudos, descobriu que quase 8% das vítimas de linchamento no Brasil são inocentes, como o caso de Fabiane. Diz ele que em uma sociedade “tão fraturada … qualquer um estaria sujeito aos impulsos violentos da multidão”. E cita alguns casos como o de Santa Catarina em que um juiz do Superior Tribunal de Justiça quase foi linchado porque estava de férias com a família utilizando carro oficial; ou o de um padre no Ipiranga, em São Paulo, que foi cercado por pais furiosos, pois não permitiu que crianças brincassem no pátio da igreja.
Pode ser que esses fenômenos venham a expressar uma crise de desagregação social. Pode ser que as pessoas estejam vivendo em seu limite emocional. Pode até ser que o descaso de nossos governantes tenha exterminado a mínima educação das pessoas. O fato é que nenhuma sociedade consegue sobreviver em um mundo animalesco como tal. Afinal, não saímos das cavernas para um mundo civilizado à toa. Como poderíamos aceitar então, viver nesse cenário de intolerância radical?

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).

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Publicado na edição 10379, de 28 e 29 de março de 2019.