Então Deus tem que ajudar

José Renato Nalini

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O IBGE anunciou que o Brasil tem mais templos do que escolas e estabelecimentos de saúde somados. São 579,8 mil enquanto o ensino ocupa 264,4 mil espaços e a saúde alcança 247,5 mil unidades.

Seria gratificante pensar que esta Pátria é a mais religiosa do planeta. Afinal, religião é o canal de recuperação dos fluidos do Criador por parte das criaturas. Se Deus é aquele ser superior, onipotente, justo, generoso, o pai – ou mãe – que perdoa e salva, o reflexo Dele deveria estar no comportamento de quem se arroga a condição de Seu seguidor.

Infelizmente, não é o que ocorre. Este é o país da desigualdade, da fome, do desemprego, dos moradores de rua, da violência a mais cruel. O território do feminicídio, das gangues, dos assassinatos dos líderes ambientais, da exploração dos indígenas, do tráfico de mulheres e crianças para a indústria do sexo.

Paradoxal que o Rio de Janeiro seja o estado em que mais existem templos e que é aquele preferido pelos líderes evangélicos, e que seja também a unidade da Federação em que as milícias competem com o Estado e estejam até acima dele.

Tem-se de relativizar esse número e pensar que boa parte da população persegue o conforto divino porque não encontra resposta nos pleitos feitos ao governo. Muita gente desesperada se agarra na religião. Mas também há muitos lobos travestidos de cordeiros, que se utilizam da Igreja para a obtenção de benefícios fiscais e fazem dela a sua profissão, diante da falta de condições para exercer aquelas que precisam de formação adequada e de diplomas.

O fato é que esses quase seiscentos mil templos deveriam fazer com que Deus olhasse com magnanimidade para esta gente que O procura tanto. E talvez isso já aconteça. Diante da qualidade de boa parte dos que se apropriam de autoridade, de cargos públicos, de postos de relevância, é apenas por milagre que os duzentos e doze milhões de seres humanos continuem a desenvolver suas vidas, seus projetos e alimentem os seus sonhos nesta boa e saudável Terra de Santa Cruz.

Cidade: berço de soluções

Cito sempre Franco Montoro, o professor de Introdução à Ciência do Direito da PUC-São Paulo: “Ninguém nasce na União. Nem no Estado. As pessoas nascem na cidade”. E é na cidade que se vive e se morre. O caramonês Achille Mbembe, autor dos livros “Necropolítica” e “Crítica da Razão Negra”, afirma: “Nossas vidas estão ligadas a um território. Para viver e existir, é preciso ter os pés em um solo. O território é o cordão umbilical que nos liga à memória e ao futuro”.

É algo que nos faz refletir. Há questões seríssimas que superam a nossa frágil capacidade de solucionar. Existir guerra fratricida em pleno século XXI, depois dos dois horríveis conflitos mundiais do século passado é algo aterrador. Mas há questões emergenciais que, embora globais, justificam nossa atuação individual e cidadã.

Uma delas é a gravidade da mudança climática. Enfrentar intensas ondas de calor é algo que não se incluía em nossas experiências. A ciência e a medicina afirmam que há mais mortes em virtude das elevadas temperaturas do que produzidas por outras causas. As precipitações pluviométricas excessivas, os vendavais, a imprevisibilidade do tempo, tudo isso é causado por nós mesmos. É a humanidade que escolheu o caminho da própria extinção, ao não conseguir administrar a emissão dos gases causadores do efeito estufa.

Enquanto os líderes mundiais não se conscientizam de que o perigo é muito maior do que se poderia imaginar, enquanto o negacionismo continua a dizer que isso é catastrofismo, os seres humanos de boa vontade têm condições de fazer alguma coisa.

O município é responsável pelos resíduos sólidos, pela excessiva tonelagem do descarte de material que deveria ter outro destino. Então, é urgente educar a população para poupar, não desperdiçar, reciclar e destinar o descarte para a sua futura utilização.

Ocupar toda área urbana ainda não edificada para o plantio de vegetação que atenua a temperatura. Recuperar córregos e riachos. Plantar mais árvores. E incentivar a juventude a criar alternativas. Os moços já nascem com chips e sabem conceber startups que dão respostas aos problemas que a minha geração não conseguiu. É a cidade o ninho em que devem ser acalentados os passos para um novo pacto entre a humanidade e a natureza. Sem isso, os prenúncios não são os melhores.

(Colaboração de José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo).

Publicado na edição 10.852, de sábado a sexta-feira, 22 a 28 de junho de 2024