Falta desconfiômetro

José Renato Nalini

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O brasileiro é um pouco abusado demais. Pensa que o mundo oficial está à sua disposição. Irresigna-se com o que considera ranço burocrático. Quer um tratamento especial. Considera-se com direito inequívoco a quebrar regras.  Não hesita em pedir coisas impossíveis, na convicção de que só depende da boa vontade de quem possa atendê-lo. Isso é rotineiro e não é de hoje. Herança lusa do “você sabe com quem está falando?” ou falta de elementar discernimento?

Não é incomum que, depois de uma fala em que se enaltece a ética, surja um ouvinte a solicitar do conferencista a prática de algo antiético. A crônica do convívio está repleta de narrativas que evidenciam a recorrência desse hábito.  Parece que os protagonistas não se dão conta de quão inconvenientes são para aquelas vítimas de seus pleitos inviáveis.

Conta-se que o intelectual Rodrigo Otávio, que era amigo e confrade do Barão do Rio Branco na Academia Brasileira de Letras, recebeu deste, certa feita, o pedido de obtenção de licença, junto ao Arcebispado carioca, para que sua filha Hortênsia se casasse na Europa dentro de alguns dias.

“Mas isso é impossível! O casamento, tanto civil, como religioso, tem de ter proclamas, prazos, editais, um processo administrativo!”.

Mas Rio Branco não se convenceu: – “Sei disso perfeitamente. Mas você é poderoso, consegue arranjar tudo e vai resolver, tenho certeza!”.

Rodrigo Otávio ficou mais do que apreensivo, ficou desesperado. Contudo, foi à Cúria e ali encontrou um seu ex-professor do Colégio Pedro II. Depois de relatar a situação, lamentando ter de atropelar a burocracia, estava tão angustiado que sensibilizou o sacerdote e obteve o quase-milagre da licença eclesiástica antes do prazo.

Voltou ao Barão do Rio Branco, a quem entregou a papelada. Agradeceu e acrescentou: – “Quando se tem boa vontade, tudo se arranja!”.

Essa mentalidade persevera e continua a causar não poucos nem pequenos embaraços àquelas vítimas dos pedidos inatendíveis. Será que não falta uma disciplina em nossas escolas: utilizar melhor o desconfiômetro?

 Poesia é talento escasso

A poesia é a melodia literária. Quem nasceu com o dom de produzi-la é um bem-aventurado. Os poemas encantam, harmonizam e desarmam. Não há quem não se enterneça ao ouvir um verso bem declamado.

Ocorre que nem todos são providos desse regalo precioso, generosa doação da Providência. Há quem se devota a escrever com abundante esforço e não consiga traduzir o que lhe vai n’alma. Não esmorece e persevera. Só que a obra não reflete o sacrifício investido ao fazê-la. Nem todos são os Fernando Pessoa, Vinicius, Bilac, Guilherme de Almeida, Vicente de Carvalho, Paulo Bomfim e tantos outros que nos deleitam com obras imperecíveis.

Amigos da poesia entregam-se a enaltecê-la, tornando-se mecenas patrocinadores de publicações poéticas. Assim aconteceu com Rodrigo Otávio, que publicava a “Renascença”, revista de inegável bom gosto, no Rio antigo. Um dia ele recebe colaboração em versos de um desembargador.

Era a versificação de uma fábula de L Fontaine. Examinado com rigor era muito fraca. Rodrigo Otávio sobrevivia de sua banca de advogado e não podia recusar o poema, deixando de publicá-lo. Criou coragem e foi emendando a obra capenga do magistrado, alterando aqui, cortando ali, acrescentando mais adiante. Ao final, quase nada restava do primitivo original, a não ser a ideia do autor.

Tirou uma prova tipográfica e a encaminhou ao magistrado. Ao encontrar-se com ele no Tribunal, o poeta vem ao encontro de Rodrigo Otávio com os braços e sorrisos abertos: “Muito obrigado! Não há nada como a letra de forma. Ao ler meus versos impressos, vi que eram muito melhores do que eu imaginava!”.

Assim, nessa versão nova, é que foram publicados na revista “Renascença” e todos ficaram muito felizes.

Seja como for, escrever poesia, ainda que não seja das melhores, é preferível sempre a destilar ódio, ira, aleivosia, ofensa, ressentimento ou qualquer outra fealdade, coisa rotineira nesta era de polarização. Mas que faltam Rodrigos Otávios para burilar produções canhestras, isso é verdade.

(Colaboração de José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo).

Publicado na edição 10.922, quarta, quinta e sexta-feira, 14, 15 e 16 de maio de 2025 – Ano 100