
Quem ainda não viu o filme “O Óleo de Lorenzo” talvez devesse fazê-lo. Mas vale uma advertência: não é um filme para se consumir num final de semana regado à guaraná e pipoca como fazemos ao assistir as bobagens holywoodianas. Nem tampouco é um filme para se divertir, embora existam cenas que nos aliviam e nos fazem rir. Mas, antes de tudo é um filme para se emocionar e principalmente se conscientizar sobre os verdadeiros valores da vida.
O filme, agraciado pelas atuações primordiais de Susan Sarandon e Nick Nolte, apresenta como tema uma doença rara que atinge somente pessoas do sexo masculino principalmente na infância, mas com ocorrências na fase adulta também. Desse tema muito bem explorado e que foi baseado em um caso real, o filme navega pela complexidade do relacionamento humano, mostrando as suas melhores e piores facetas.
Entretanto, para os mais atentos será possível fazer uma outra leitura do filme. Tacitamente ele expõe as razões pelas quais pesquisadores e cientistas do mundo todo trabalham incessantemente na procura obstinada de novos medicamentos ou mesmo de simples indícios que possam levar à cura, uma doença qualquer.
O desafio das doenças raras
No mundo existem cerca de 7 mil doenças raras, das quais cerca de 300 são raríssimas. Evidentemente esses números podem variar no tempo e no lugar, já que países conseguem controlar melhor ou pior as endemias em função do seu poder econômico.
As doenças raríssimas não necessariamente ocorrem em países pobres e subdesenvolvidos, já que o seu processo de surgimento muitas vezes está ligado à herança genética, mutações moleculares ou simplesmente à síntese deficiente de elementos fundamentais à evolução do organismo. São essas doenças que têm levado inúmeros pesquisadores do mundo todo a enfrentarem intermináveis maratonas em pesquisas e estudos de aprofundamento do conhecimento, porque alegam eles que desses estudos podem surgir a cura para outros tipos de doença, fato não raro.
Algumas instâncias
O hermafroditismo refere-se a pacientes que possuem genitália ambígua, ou seja, com características sexuais externas que põem em dúvida o seu gênero. Num mundo ideal, esse tipo de ocorrência deveria ser descoberto precocemente, se possível ainda no berçário. Entretanto, há casos em que o paciente atinge a idade adulta com o problema ainda desconhecido, frequentemente devido aos próprios pais esconderem a doença do filho no sentido de poupá-lo de constrangimentos.
Há alguns anos, a equipe de pesquisadores Ivo Arnhold e Berenice Mendonça, na época na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), estudou esse tipo de doença no Brasil. Alguns resultados obtidos os levaram a entender o processo biológico pelo qual se desenvolvem as características sexuais, contribuindo sensivelmente para melhorar o seu processo diagnóstico, definindo padrões eficientes de acompanhamento médico e psicológico e abrindo caminho para novas terapias.
Nessa mesma filosofia de trabalho caminhou a dermatologista Patrícia Delai, que após passar uma temporada estudando na Universidade da Pensilvânia, se aprofundou na pesquisa de outra doença rara chamada fibrodisplasia óssea progressiva (FOP). Essa doença transforma, aos poucos, os músculos em tecido ósseo provocando uma sensível limitação nos movimentos do paciente. Delai conseguiu desvendar o enigma da disfunção que provoca a doença localizando a alteração genética específica. Agora ao invés de apenas estudar melhor a doença, os pesquisadores podem produzir cobaias com a disfunção e testar medicamentos que venham a curar a doença num futuro não tão distante.
Diferentemente dos casos relatados em que ainda não foi possível a obtenção da cura, as pesquisas que envolveram a hipercolesterolemia familiar – doença hereditária rara que leva pacientes a apresentarem índices de colesterol altíssimo desde a infância, provocando doenças coronarianas e até infarto – conseguiram mostrar claramente o mecanismo de transporte do colesterol para o interior das células e indicar os meios de bloqueá-lo. O resultado foi a criação das estatinas, medicamento amplamente utilizado no mundo para combater os altos níveis de colesterol.
A jornada da ciência e dos pacientes
Quem já passou por uma longa peregrinação entre consultórios e hospitais devido a algum problema de saúde, seja em causa própria, seja em função de parentes ou amigos, sabe o quão difícil é viver essa situação. Escutar de um médico um “ainda não sabemos como curar” a doença de um ente querido não deixa de ser uma violência ao nosso emocional. Talvez seja nesse momento que a razão científica mostre a sua maior fragilidade, embora a ciência não exista para confortar a dita alma humana. A fé (não necessariamente religiosa) certamente exerce melhor esse papel.
Entretanto, existe no mundo um exército de cientistas e pesquisadores dispostos a afrontar o desafio que a natureza nos impõe quando cria organismos frágeis e defeituosos. Embora esse desafio seja potencializado pela própria sociedade que também cria as suas barreiras ideológicas, os cientistas jamais vão se mostrar desanimados ou abatidos. Aliás, não existe nada melhor do que um bom e difícil desafio para motivar um cientista. Esse é o verdadeiro poder da fé da ciência!
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor da informação).
Publicado na edição 10.696, quarta, quinta e sexta-feira, 31 de agosto, 1º e 2 de setembro de 2022.