O filho esquecido

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Três foram as características que evidenciaram o fim do trabalho amador caseiro pela produção automatizada massiva, arrolada durante a revolução industrial: a substituição de ferramentas por máquinas; a substituição da energia humana pela energia motriz; e a superação do modo de produção doméstico pelo sistema fabril.
Se tudo começou na Inglaterra por volta de 1760 com a produção de bens de consumo básicos, em 1900 a revolução já atingia todos os continentes do mundo com a criação de ferrovias, usinas hidrelétricas e produção em série. Parece-nos que a revolução fermentou durante os vários séculos da Idade Média para eclodir na era do Iluminismo. Essa fermentação, embora ignorada pela história, desenvolveu-se de forma gradativa, mas perene, e foi fundamental para o desabrochar da alta industrialização do século XX.

O alvorecer da revolução

Os carpinteiros e artesãos da Idade Média, considerados os precursores dos engenheiros atuais, utilizavam de sua criatividade, experiência e habilidade para construir aparatos cujo objetivo era facilitar a dura realidade dos concidadãos. Casas, pontes e canais são exemplos de obras que permitiram à população emergir de uma vida praticamente selvagem para um relativo conforto característico da civilização.
A bem da verdade, os pré-engenheiros já demonstravam suas realizações séculos antes da era cristã. A Grécia, considerada o berço da civilização, é um bom exemplo ao revelar suas imponentes construções compostas de sofisticados aquedutos, além dos artefatos de guerra e navios, fundamentais para o domínio dos mares Jônico, Egeu e Mediterrâneo. Evidentemente que essas realizações ocorreram de forma artesanal, sem um sentido de produção industrial, mas tiveram os seus méritos.

Lembrando do filho

Quem já leu o livro Dom Quixote, obra de Miguel de Cervantes (1547 – 1616), vai se lembrar dos personagens que foram imortalizados mundo afora: o próprio Dom Quixote de La Mancha, o seu fiel escudeiro Sancho Pança, o cavalo Rocinante e a dama Dulcinéia. Trata-se de uma coleção quase surrealista de perfis que elevaram a obra de Cervantes ao patamar das genialidades da literatura mundial. Embora fazendo parte do cenário, um outro elemento marcou importante presença nesta sátira aos cavaleiros medievais, e sempre que vemos a sua figura, nos recordamos das difíceis “batalhas” travadas por Dom Quixote em suas andanças por terras européias. Falo dos grandes moinhos de vento. 
Para quem lê essa obra em busca de elementos literários, de uma reflexão social ou até mesmo de pura diversão, não se dá conta da importância dos moinhos na evolução da mecanização mundial e na própria revolução industrial. Sem dúvida eles foram os seus precursores ao domesticar a força da água e do vento para a produção de energia.
No início da Idade Média, entre os séculos VI e X, os engenheiros utilizavam a força da correnteza para movimentar uma pedra larga e dura chamada mó. O processo era simples e o seu objetivo primário era moer os grãos, principalmente de trigo, para confecção de alimentos como pão e outros derivados.
Tão logo a prática de moagem se tornou bem conhecida, engenheiros pensaram no aproveitamento da energia eólica e logo os primeiros moinhos de vento começaram a surgir e rapidamente fizeram frente aos pioneiros de água. Consequentemente expandiram-se as especialidades dos moinhos, como a secagem de produtos, irrigação de lavouras, movimentação de foles para altos-fornos e várias outras atividades relacionadas à manufatura em geral. No fim da Idade Média mais de 40 atividades produtivas já eram realizadas pelos moinhos. Graças a eles, muitas fases da produção foram mecanizadas e padronizadas, o que deu origem às grandes manufaturas que promoveram a revolução industrial e a industrialização no mundo todo.
Portanto, quando ligamos o nosso computador, dirigimos o nosso carro ou lemos Dom Quixote, devemos lembrar que os grandes moinhos do passado não foram meros figurantes da história. Foram os verdadeiros precursores da industrialização em massa.

(Colaboração de Wagner Zaparoli, natural de Bebedouro, doutor em Ciências pela USP, mestre em Ciência da Computação, professor de lógica e consultor. E-mail: [email protected]).

Publicado na edição nº 9590, dos dias 29 e 30 de agosto de 2013.