O inverno está chegando

José Mário Neves David

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Em termos climáticos, estamos no hemisfério sul do planeta, caminhando para o término do inverno e o início da primavera, mais precisamente em 22 de setembro próximo. Na outra metade do planeta, isto é, no hemisfério norte, onde estão quase totalmente localizados os países mais desenvolvidos do mundo, a ordem é inversa: estes se preparam para a despedida do verão e, em algumas semanas, recepcionarão o outono. Nos próximos meses, os países da América do Norte, da Europa, da Ásia e de parcela da África – estes últimos em menor intensidade – caminharão para um clima mais frio e nebuloso, metafórica e efetivamente.

Com a queda das temperaturas nas nações do hemisfério norte, é comum, especialmente nos Estados Unidos, Canadá e países europeus, que os cidadãos se utilizem de gás natural para aquecimento de suas casas e ambientes de trabalho e lazer em vista as temperaturas negativas que, com frequência, ocorrem nos meses de outubro a março. O gás em questão, obtido pela União Europeia majoritariamente da Rússia, tem gerado atritos em questões geopolíticas, especialmente após o início do conflito militar na Ucrânia, e inflacionárias, dado o receio real de que a Rússia limite ou até corte (torne escasso) o fornecimento da principal fonte energética dos europeus bem no período em que os cidadãos daquele continente mais precisam do gás para se aquecer.

A dependência da União Europeia em relação ao gás russo é inequívoca. O gigante da Eurásia fornece 45% do gás consumido pelo bloco, o que representou 155 bilhões de metros cúbicos do insumo energético em 2021. Os principais consumidores são justamente as economias dentre as mais desenvolvidas do continente, notadamente a Alemanha, a França e a Itália. Tal volume de gás, e em estreita relação de dependência, não pode ser facilmente obtido de outros fornecedores da noite para o dia. Neste contexto, fontes de energia mais poluentes, tais como o carvão, que haviam praticamente sumido da matriz energética europeia, voltaram a ser acionadas em razão da proximidade do inverno e, consigo, do aumento do consumo de sistemas de aquecimento.

Neste cenário, há um enorme imbróglio a ser resolvido pelos países do norte, especialmente os europeus. A oposição à Rússia na invasão da Ucrânia gera atritos com o principal fornecedor de gás da União Europeia – é até difícil compreender como países desenvolvidos e com visão estratégica se deixaram envolver e depender tão intensamente de um fornecedor que utiliza da geopolítica como arma de guerra. Com tais atritos, os europeus são forçados a buscar novos fornecedores de gás, porém a logística e a lógica comercial dos contratos praticamente inviabilizam uma mudança relevante de fornecimento no curto prazo.

Fontes energéticas poluidoras, as quais haviam sido praticamente banidas, estão sendo reativadas, em clara contradição com o discurso ESG e de responsabilidade climática e ambiental capitaneado pelos europeus (o que demonstra que, na hora do aperto, convicções ideológicas dão facilmente lugar às necessidades mais prementes). Tudo isto em um ambiente de inflação alta, receios de novos conflitos à vista e aumento descontrolado de preços e tarifas de energia para os europeus, inviabilizando negócios e levando famílias para escolhas difíceis – um ambiente conturbado, altamente incerto e favorável para distúrbios sociais em grande escala, tudo os que os políticos e mandatários mais temem. Tem mais: a seca e as altas temperaturas do verão do hemisfério norte geraram perdas de produção em commodities alimentares, o que deve gerar ainda mais pressão inflacionária. Uma tempestade perfeita.

Fica, assim, a sensação de que parcela dos países europeus foi ingênua ou pouco responsável na lida com as questões geopolíticas mundiais, especialmente quando o risco de conflito envolvendo a Rússia e países fronteiriços se tornou real. Nunca é interessante depender basicamente de um único fornecedor do que quer que seja, especialmente de um item básico utilizado como fonte de energia, ainda mais quando o fornecedor está suscetível a situações de estresse ou à utilização dessa dependência a seu favor. Neste sentido, é importante que todos os países aprendam com a difícil e incerta situação da Europa, a fim de que erros estratégicos como os aqui abordados não sejam repetidos ao longo da história. O inverno está chegando para os europeus.

(Colaboração de José Mário Neves David, advogado e consultor. Contato: [email protected]).

Publicado na edição 10.697, de sábado a sexta-feira, 3 a 9 de setembro de 2022.