Os recentes acontecimentos geopolíticos a que o mundo assiste chocam nossos olhos, mentes e corações. Difícil entender, sob a perspectiva racional e lógica, como ainda pode haver conflitos entre nações e povos em pleno século XXI. Porém, no embate global, a lógica dos interesses e do jogo de poder é bem mais ampla e complexa do que o senso comum permite assimilar.
Nos últimos tempos, algumas questões inquietam a população global. Acompanhamos com atenção os desdobramentos do conflito entre russos e ucranianos, além de assistirmos com preocupação a escalada dos embates entre israelenses e palestinos, mais especificamente os terroristas de grupos extremistas. Ademais, há a questão da China e sua pressão constante sobre Taiwan (que pode resultar em confronto direto), as instabilidades nas frágeis democracias e nas perenes ditaduras africanas, o avanço do Azerbaijão sobre a Armênia, dentre muitas outras questões.
Mais do que um sinal de alerta e uma fonte de perigo, as instabilidades e os conflitos mundo afora são retratos de tempos de enorme polarização, da intolerância exacerbada e da supremacia da força ante a diplomacia. Muitos desses eventos, contudo, têm enorme potencial de gerar instabilidade crescente e descontrolada e, em maior medida, promover profundas mudanças no tabuleiro global de poder.
A concomitância de dois importantes conflitos, quais sejam, Rússia vs. Ucrânia e Israel vs. organizações terroristas, as quais envolvem, direta ou indiretamente, potências nucleares, dragam recursos e esforços de importantes atores da geopolítica global. Os Estados Unidos e a Europa se veem cada vez mais absorvidos pela dinâmica dos conflitos, em que abstenção ou indiferença não são opções possíveis.
Os Estados Unidos estão fornecendo ajuda material, humana e de inteligência à Ucrânia e à Israel, sob o argumento de que defendem as democracias e não toleram o terrorismo ou a invasão de países soberanos. No fundo, contudo, o que se vê é uma guerra por procuração contra a Rússia, velha e conhecida inimiga, e a necessidade de se apoiar Israel, velho aliado. Esse apoio tem enormes custos financeiros e políticos, porém é necessário para que o inimigo mortal se fortaleça ou o terrorismo fanático explodam em terras longínquas e perigosas, reduzindo a influência norte-americana no mundo. Um jogo de xadrez complexo, perigoso e necessário para os Estados Unidos.
Já a Europa se encontra numa crise existencial. Se a Rússia dominar a Ucrânia, o que garante que outros países europeus, especialmente os do leste do continente, também não serão subjugados à força pela maior potência nuclear do planeta, com um líder autoritário e com pretensões de reavivar a União Soviética e seus tempos de glórias? É claro que o risco está no quintal das democracias europeias. Ademais, o avanço do terrorismo, especialmente entre células de origem muçulmana, assusta profundamente as nações europeias, que albergaram ao longo das últimas décadas, imigrantes, alguns de colônias de ascendência árabe. Em determinados países, como a França, caminha-se para uma maioria muçulmana da população em alguns anos, o que, por certo, torna o combate ao terrorismo extremista islâmico uma necessidade. Estar ao lado da Ucrânia e de Israel é mandatório.
No mais, o esforço conjunto do mundo ocidental contra a tirania e o terrorismo se enfraquece quando há inúmeras batalhas e perigos sendo administrados e combatidos ao mesmo tempo. Nesse cenário, tanto Rússia quanto, especialmente, China, com sua pretensão hegemônica e aspirações de grande potência, vão aumentando suas influências em regiões que, talvez não tão relevantes no xadrez global atual, poderão fornecer maior influência e poder no médio e longo prazo em um cenário multipolar. Até o Irã, velho inimigo dos Estados Unidos e de Israel, está surfando boas ondas no cenário atual, aumentando sua posição de liderança perante o mundo árabe a as potências em ascensão. Sua adesão ao bloco dos BRICS reforça esse sentimento.
Assim, o cenário atual e as projeções futuras indicam uma reorganização de poder no mundo, em que figuras hegemônicas, como os Estados Unidos, e os valores e crenças ocidentais, capitaneados pelos países do hemisfério norte ocidental, estão cada vez mais pressionados e abrindo espaço para rupturas que permitam a ascensão de novas potências, talvez regionais, talvez globais. Acompanhemos os próximos passos e, especialmente, os posicionamentos e as jogadas do Brasil nesse tabuleiro cada vez mais instável e imprevisível.
(Colaboração de José Mário Neves David, advogado e consultor. Contato: [email protected]).
Publicado na edição 10.797, sábado a terça-feira, 21 a 24 de outubro de 2023