
“Se queres paz, prepara-te para a guerra”.
A decisão da primeira Câmara do STF de afastar o tucano Aécio Neves e determinar seu recolhimento noturno acirra as tensões entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Pode ou não a mais alta Corte Judiciária afastar um parlamentar de suas funções? Se tal possibilidade se confirmar, a tese vai subir a montanha da polêmica, pois significará que a Suprema Corte, ao ordenar o afastamento de um senador, poderá fazer o mesmo com outros membros do Senado e, por extensão, da Câmara. Assim, nossa democracia vestiria o manto da “judiocracia”, sistema plasmado sob obra e graça do Poder Judiciário.
Deixemos o debate para o foro jurídico, sob a crença de que o Plenário do Supremo voltará a debater o tema. Afinal, há uma divisão de pontos de vista entre seus 11 ministros. Mas o fato é que o repto da Corte começa a receber do Senado uma resposta, com senadores, a partir do presidente Eunício Oliveira, dispostos a brandir o recado: se vis pacem para bellum – se queres a paz, prepara-te para a guerra. O receio de uns é que a decisão sobre Aécio possa, mais adiante, ser aplicada a outros.
O fato é que há algum tempo o Supremo adentra o território legislativo. Não se trata apenas de constatar o vácuo que se forma na tessitura institucional a partir da ausência de legislação ordinária para normatizar o campo político. O STF cumpre a função de interpretar a Constituição e, por falta de aclaramento normativo, acaba ingressando na seara legislativa. O Executivo inunda canais da Justiça para ampliar e garantir suas decisões. O Legislativo instaura copiosa agenda que acaba batendo na Alta Corte. O MP flagra ilícitos de toda ordem, encaminhando farta pauta de conflitos ao Judiciário. Minorias políticas recorrem às Cortes para fazer valer direitos. Associações civis e esferas governativas produzem Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
Diante dessa moldura, emerge a questão: os Tribunais se apropriam de tarefas legislativas, sendo responsáveis pela multiplicação de conflitos políticos? O fio que conduz ao novelo da política judicializada é a interpretação de direitos já institucionalizados. Não se trata mais de definir o direito de cada indivíduo, mas de interpretar e mensurar seus limites. No princípio do Estado moderno, o Judiciário era mero executor de leis.
Montesquieu ponderava que juízes significavam a boca que pronuncia as palavras da lei, entes que não podem aumentar ou enfraquecer seu vigor. O tripé dos Poderes alinhava-se numa reta, embora o Legislativo ainda tivesse maior projeção. Com o advento do Welfare State, o Executivo passou a intervir de maneira forte para expandir a rede de proteção social. Passou, inclusive, a legislar, fato hoje medido entre nós pelas medidas provisórias e leis do Executivo. Ao decidir se os Poderes Executivo e Legislativo, partidos e outros entes agem de acordo com a Constituição, o STF acaba definindo a política que regra a vida nacional, elevando o Judiciário a um patamar superior.
O fortalecimento do Judiciário, a partir da 1ª instância, é impulsionado pela sujeira que mancha a política. A Operação Lava Jato afunda políticos e eleva juízes e procuradores. A passagem da política pelos túneis judiciários se tornou mais intensa, a partir de 88, quando a “Constituição Cidadã” escancarou o portão das demandas sociais. Os textos legais, por seu lado, férteis em ambiguidade, propiciam condições para a instalação de um processo de judicialização da vida social. O MP, por sua vez, desenvolve forte ativismo.
O que fazer diante da decisão sobre o senador Aécio Neves? Salvá-lo. Ou seja, a tendência de salvaguardar suas funções é a via a ser seguida, até como barreira corporativa. A Tríade do Barão de Montesquieu está envergada, pendendo para um lado.
Colaboração de: Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato