O brasileiro fala do brasileiro como sendo alguém que ele mesmo, que fala, não é. Como se não fosse brasileiro. O brasileiro é sempre aquele de quem se fala, nunca é quem fala. É um lugar onde, na fantasia, no desejo e na escolha, não mora ninguém, só quem não teve outra opção mesmo. É uma condenação, um azar do destino. Isso talvez diga algo sobre o país, sobre nós, e sobre o modo como nos relacionamos com ele.
Um lugar, uma identidade e uma imagem da qual a gente sente uma urgência envergonhada de se diferenciar. E se satisfaz nessa tentativa. As buscas de cidadanias, cada vez mais frequentes, já nem vêm mais acompanhadas, ao contar a estória, do outro país ao qual se referem. É apenas uma cidadania, como se fosse a única, como se antes dela, sem ela, não existisse nenhuma. O cidadão brasileiro não existe em primeira pessoa, é sempre um outro, uma espécie de terreno baldio onde depositamos, de um jeito meio disfarçado, meio escondido, meio constrangido e meio sacana, todo o nosso entulho e o nosso lixo. O brasileiro é um bode expiatório, por excelência.
O brasileiro se relaciona com o Brasil como sendo um não lugar. Como quem gostaria de ser de e de estar em outro lugar. A coisa pública, o espaço público, tudo aquilo que, em tese, seria de todos nós, na prática não é de ninguém. As possibilidades de realização existentes são individuais. O sonho não é poder contar com o país, é não precisar contar com ele. Não existe um ideal de nação em torno do qual estejamos organizados enquanto coletividade. Em seu lugar, apenas uma sensação difusa de salve-se quem puder.
Os rumos que o país vai tomando acabam servindo de justificativa para que essa posição discursiva se consolide e se perpetue. Mas me parece importante questionar essa relação de causa e efeito, no sentido de propôr que talvez esse jeito de se relacionar com o país e com a ideia de ser brasileiro existam há mais tempo do que imaginamos e sejam mais responsáveis do que supomos por tudo isso que acontece por aqui.
Não pretendo, com essa reflexão, propôr uma alternativa nacionalista e patriótica, considerando todo o conservadorismo e a xenofobia presentes nesses discursos. Além disso, o próprio patriotismo brasileiro enaltece um país que sequer é o Brasil, o que, por si só, é uma questão muito séria e um exemplo particularmente claro disso tudo. Minha intenção é identificar um aspecto que me parece participar de maneira fundamental da construção e da cronificação dos problemas que enfrentamos. É apontar o desinvestimento libidinal no país, nos vários níveis em que ele acontece, como um agente silencioso, e por isso mesmo tão importante, na determinação de seus caminhos.
(Colaboração de Lucas Simões Sessa, psicólogo).
Publicado na edição nº 10503, de 22 a 24 de julho de 2020.