

Discute-se muito, hoje principalmente, sobre feminismo, desigualdade social e a cultura machista predominante no Brasil, que mesmo com tantos veículos de comunicação retratando o assunto constantemente, muitos ainda não têm dimensão do tamanho desses problemas, que envolvem a sociedade como um todo, em diferentes pontos e aspectos.
O curta-metragem ‘Vida Maria’, produzido pelo animador Márcio Ramos, em 2006, nunca esteve tão em voga 13 anos depois. Afinal, um tema como este sempre estará em evidência e dificilmente se tornará algo não-factual. O ponto de vista, neste caso, está diretamente ligado a quem assiste ao curta-metragem e, principalmente, em qual região deste grande Brasil, este espectador está.
‘Vida Maria’ se passa no sertão do Ceará, no Nordeste do Brasil, realidade bem diferente de quem vive no Sudeste e Sul, por exemplo, que não faz ideia da dimensão que estes problemas sociais causam nestas regiões.
Inteiramente produzido em 3D, ‘Vida Maria’ traz a realidade de forma ágil e simples, ágil pelo formato, um curta- metragem, simples para que tudo se encaixe perfeitamente no cenário nordestino, sem perder, em momento algum, a essência da verdade e a dureza da vida de quem está lá. A narrativa utiliza métodos da linguagem audiovisual que deixa qualquer espectador atento, com os olhos vidrados.
Uma dessas linguagens utilizadas é o plano sequência, sempre inserido nas produções quando o intuito é passar credibilidade e confiança. Toda a construção deste plano foi minuciosamente pensada, principalmente nos momentos que têm passagem de tempo. Tudo fica claro e, aos poucos, o público entende a montagem da narrativa e se molda ao fato de que a vida da personagem Maria José está passando nos poucos passos que ela dá.
O que ajuda a compor essas passagens de tempo são, principalmente, os figurinos que vão se alternando conforme a personagem vai caminhando e mostrando sua rotina diária, debaixo do sol e com serviço pesado. Outro fato social bem comum envolvendo às mulheres e sua realidade no sertão nordestino é o fato de que os filhos homens têm sempre melhores condições.
Já no final da história, Maria José varre o pátio da casa enquanto vários filhos passam por ela e pedem a benção. Entende-se, neste ponto, que os meninos estão indo à escola. Em seguida, anos mais tarde, Maria José olha pela janela e vê sua filha escrevendo em um caderno. Entra em casa chamando-a pelo nome, Lurdes. A fala de Maria José com a filha é a mesma que sua mãe proferiu anos atrás: “Lurdes. Oh, Lurdes, tu não tá me ouvindo chamar não, Lurdes? Tu não sabe que aqui não é lugar pra tu ficar agora? Em vez de ficar perdendo tempo desenhando nome, vá lá pra fora arranjar o que fazer. Vá. Tem o pátio pra varrer, tem que levar água pro bicho. Vai menina, vê se tu me ajuda, Lurdes.”
É neste momento que a pequena corre para fora de casa até a torneira de água no quintal, onde provavelmente vai encher o balde para matar a sede dos animais. A cena é igualzinha à primeira exibida, prova de que a história se repete. Antes de encerrar é possível ver Maria José observando a filha da janela (como sua mãe fazia), enquanto atrás dela, o corpo da mãe é velado.
Ou seja, a mãe se foi, mas os costumes continuam e a possibilidade de Maria de Lurdes fazer o mesmo com sua filha é enorme. É um ciclo que dificilmente se fechará. Antes do fim, as páginas do caderno se viram, uma a uma, sendo possível ver alí, naquelas páginas, a história que tanto se repetiu, várias Marias, várias gerações: Maria de Lurdes, Maria José, Maria Aparecida, Maria de Fátima, Maria das Dores, Maria da Conceição e Maria do Carmo e tantas outras Marias que têm vida igual, a Vida Maria.
Além da história e do realismo transmitido pelo plano sequência, os traços dos personagens mostram bem as peculiaridades do sertão nordestino, as expressões e atitudes foram muito bem construídas e, juntamente com a trilha sonora original de Hérlon Robson, transformaram o curta em uma obra de arte, que não se encaixa nos padrões da indústria cultural e que nunca esteve estampado nos cinemas brasileiros e tampouco passou na televisão, assim como pouco teve divulgação nas colunas de críticas em jornais populares e revistas de entretenimento.
‘Vida Maria’ classifica-se sim, como uma obra de arte. Arte esta que deveria ser reproduzida em todas as escolas com o intuito de fazer-se pensar, de deixar o aluno mais crítico, mais afiado e mais por dentro da realidade de muitos. A crítica social, afinal, sem um bom roteiro ficcional clichê envolvido, dificilmente entra para o mercado industrial da cultura e não chega a todos, infelizmente.
Para quem quiser ver – ‘Vida Maria’ está disponível no YouTube, tem pouco mais de oito minutos e você pode apreciar através do link: https://www.youtube.com/watch?v=yFpoG_htum4
Publicado na edição de nº 10409, de 13 a 16 de julho de 2019.