
Alguns aspectos da globalização instaurada no final do século 20 imputaram às organizações no mundo, pesados fardos cujo custo não tem sido pequeno. Aumentar indiscriminadamente a produtividade e o desempenho levou várias delas a investir pesado em pesquisas para descobrir novos métodos produtivos.
Outras, entretanto, simplesmente transferiram a seus colaboradores e funcionários o custo dessa empreitada, alongando os turnos de produção num esquema de trabalho contínuo, caracterizando a sociedade contemporânea como a sociedade 24 por sete.
Ato contínuo, o trabalho em turnos, que já era uma característica comum às grandes metrópoles, passou a ser regra básica a qualquer comunidade que sonha com a famigerada prosperidade sem remorsos.
Como é de conhecimento, o trabalho em turnos normalmente desencadeia um déficit de sono conhecido nos meios médicos como privação aguda ou crônica do sono. Essa privação costuma levar à fadiga e ao aumento dos riscos de erros. Dependendo do cenário, esses erros podem colocar muitas vidas em perigo.
Aliados aos turnos, o excesso de jornada sem interrupções e a ingestão de drogas para a manutenção da vigília completam o quadro negativo a que chegamos neste século 21.
Alguns segmentos do mercado produtivo sinalizam pouca preocupação com o assunto. Outros, ao contrário, tentam entender o problema, levando-o às minúcias. É o caso da indústria de transporte aéreo.
Os fundamentos
No final de 2008 um grupo de pesquisadores do Centro de Estudo Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes (Cemsa), liderados por Marco Túlio de Mello, publicou um artigo na revista científica Brazilian Journal of Medical and Biological Research que dava conta do impacto do sono nos pilotos da aviação comercial brasileira.
Uma das constatações importantes a que chegaram dizia que o risco de um piloto ou copiloto falhar de forma grave é cerca de 50% maior quando sua escala de trabalho se prolonga entre meia-noite e seis horas da manhã. A cada 100 horas de voo realizadas durante a madrugada, os comandantes comentem em média, 9,5 erros de nível 3 (o mais perigoso para a segurança da aeronave), enquanto que nessas mesmas 100 horas durante o período diurno, os comandantes comentem em torno de 6,5 erros.
A pesquisa foi baseada num levantamento realizado entre 1º de abril e 30 de setembro de 2005 e contemplou a análise de 987 pilotos em mais de 155 mil horas de voo. A despeito das 1.065 falhas constatadas, nenhuma delas levou a acidentes com vítimas, haja vista que a grande maioria foi neutralizada por manobras corretivas e sequer despertou a atenção dos passageiros.
Jornada macabra
Como os caminhoneiros e motoristas de ônibus, que se lançam noite adentro pelas rodovias do país em longas jornadas, os pilotos de aviões costumam cumprir turnos com mais de nove horas de duração sem interrupções ou descanso. Pior, muitas companhias adotam a alternância dos turnos como algo natural em suas grades de distribuição de voos.
Como conseqüência, o ciclo circadiano do corpo acaba por ficar desestruturado o que leva a conseqüências iminentes como o cansaço, sonolência, estresse e mau humor. Concomitantemente, dormir fora de casa e longe da família com certa frequência contribui sensivelmente para minar o equilíbrio psicológico. Pensando na capacidade de um piloto, que tem em suas mãos um equipamento delicado, responsabilidade por dezenas de vidas e poucos segundos para tomar uma decisão, não é de se surpreender que o número de falhas seja grande no período noturno.
Mello explica que a idéia da pesquisa não é sinalizar para um fim dos voos noturnos, os quais se mostram cada vez mais comuns nos céus do país, mas sim, tentar determinar diretrizes que possam identificar, para cada piloto, qual o melhor horário, melhor grade e conjuntara de trabalho que possam ser aplicados no sentido de diminuir ao máximo os riscos de acidente. Cada indivíduo tem o seu próprio equilíbrio natural (relógio biológico). Sincronizá-lo com as necessidades da companhia seria um passo fundamental nesse sentido e todos sairiam ganhando: a companhia aérea, por diminuir o número de acidentes; o piloto por usufruir de uma jornada mais racional; e os clientes, por correrem menos riscos.
Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação.
Publicado na edição nº 10270, de 7 e 8 de junho de 2018.