Nas relações humanas a troca de favores sempre foi uma característica marcante a tal ponto de se tornar um negócio rentável. As mazelas políticas, cada vez mais presentes aos olhos da população, são exemplo crasso: operação zelotes, esquema da rachadinha, orçamento secreto e vários outros tipos de escândalos, com os quais a propina é distribuída generosamente em troca de apoio à manutenção do poder, da fama e da riqueza. Embora o círculo político seja um dos mais visados ambientes para a propagação de favores, podemos observar que tal prática ocorre em vários outros segmentos sociais. Quanto mais poder, fama e riqueza se acumulam, mais longe se está das filas, dos desrespeitos e da discriminação.

Para o benefício de alguns e o descontentamento de muitos, a troca de favores entre humanos é frequentemente desigual, haja vista a situação social de nosso próprio país, que contrapõe a riqueza natural e a grande extensão territorial à fome e à miséria.

Mas, de onde vem essa herança tacanha que permite ao homem escravizar o próprio homem? Quando é que ele aprendeu a fazer da gratidão, um verdadeiro negócio?

As regras da natureza

Inúmeros estudos científicos têm evidenciado que os hominídeos ancestrais do Homo sapiens já praticavam o cooperativismo como forma de manutenção da espécie. Sobreviver ao redor de tantos predadores certamente implicava na vida em grupo, a qual otimizava a vantagem mútua sem desestabilizar os interesses compartilhados. Assim sendo, características como a reciprocidade, a divisão de recompensa e a cooperação, há muito existem na natureza e não estão restritas à espécie humana ou qualquer linhagem ancestral.

Frans B. M. De Waal, professor de comportamento primata na Universidade de Emory, EUA, realizou diversos estudos com chipanzés e macacos-prego com o objetivo de determinar a existência de algum mecanismo operador do cooperativismo entre esses animais. Em artigo publicado na revista Scientific American, em 2005, De Waal descreve relatos de longas observações do comportamento cotidiano dos animais, não só dos primatas, mas de peixes, crustáceos, morcegos, entre outros.

O negócio dos animais

Dos menos sociáveis, o caranguejo eremita talvez seja um dos animais a realizarem uma espécie de “negócio rudimentar”. Para proteger o seu mole abdômen, ele carrega a sua casa consigo. A casa, que pode ser uma concha abandonada, não acompanha o crescimento do eremita, o que o força a trocá-la periodicamente. Logo que ele dispensa a concha ultrapassada, outros caranguejos formam fila para tê-la como moradia e proteção.

Ao pé-da-letra não se pode dizer que essa troca/apropriação de casas se configure numa negociação propriamente dita e não se pode negar que normalmente uma casa ou apartamento desocupado pede um novo inquilino. No que tange ao mercado imobiliário, o homem e o eremita parecem ter muito em comum.

Ao observarmos uma outra esfera de animais podemos perceber que o nível de negociação e reciprocidade fica nitidamente evidente. Vejamos o caso das fêmeas do macaco babuíno. Normalmente elas são muito ligadas aos filhotes, não só aos seus, mas principalmente aos das vizinhas. Para quebrar a relutância das mães e se aproximarem dos filhotes, as fêmeas curiosas fazem uma relaxante sessão de limpeza nas mães, enquanto observam de perto os recém-nascidos e por vezes chegam a tocá-los. As curiosas “pagam” para estarem ao lado dos bebês. O mais interessante dessa relação é que quanto menor o número de recém-nascidos, maior o “preço cobrado”, ou seja, maior o tempo de limpeza requerido pelas mães.

A fila do peixe

Existe uma espécie de peixe limpador denominada Labroides dimidiatus que se alimentam de parasitas dos peixes maiores. Cada peixe limpador estabelece o seu “limpa-peixes” (como o nosso lava-jato) num recife de coral para onde a sua clientela se dirige, com o objetivo de se livrar dos parasitas. O limpador mordisca a boca, o corpo e as nadadeiras do peixe maior (cliente), limpando-o e alimentando-se simultaneamente. Muitas vezes o trabalho do limpador torna-se tão intenso que se forma uma fila nas cercanias do recife. Interessante é que se o peixe cliente tiver que esperar muito na fila ou perder a confiança no peixe limpador (por vezes o limpador trapaceia retirando tecido bom), nunca mais ele aparece naquele “limpa-peixes”.

Na mira do desequilíbrio

Embora a negociata e o cooperativismo existam em abundância na natureza, nenhum estudo conseguiu evidenciar qualquer tipo de distúrbio que viesse a causar um desequilíbrio explícito entre as espécies animais.  Não se sabe de fato se os animais entendem o significado dos favores dados e recebidos e se existe algum tipo de relação de obrigatoriedade entre eles. O que impressiona é que, independentemente de terem ou não consciência, conseguem realizar suas negociações em perfeita harmonia com o meio.

Na esfera humana, em que pese a tão propalada civilidade, parece-nos que o desequilíbrio é o carro chefe, principalmente quando abordamos os principais pilares sociais, como a saúde, a educação e o direito ao trabalho.

Querido leitor, não é possível acreditar que vivemos em uma democracia com tanta fome, tanta miséria, tanta gente fora da escola e doente. Como não é possível acreditar, que nós, humanos, tendo a plena consciência dos impactos de nossas negociações do dia a dia, estejamos fazendo-as pensando mais no coletivo e menos no individual.

E em ano de eleição vão surgir uma porção de Labroides politicus querendo mordiscar um pouquinho da nossa existência. Vamos deixar?

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em Ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).

Publicado na edição 10.877, quarta e quinta-feira, 2 e 3 de outubro de 2024 – Ano 100