
Marcelo Bosch Benetti dos Santos
Não se trata de demonizar a culpa; ao contrário, ela é um sentimento inerente ao ser humano
Nas mais diversas circunstâncias comumente experienciamos o sentimento de culpa, que com frequência e intensidade variáveis aparece na relação com amigos, com familiares, no ambiente de trabalho, nas relações afetivas e na própria relação das pessoas consigo mesmas. Esse sentimento, ao mesmo tempo habitual e complexo, surge na infância, nos primeiros anos de vida, e está associado ao desenvolvimento psicológico como um todo.
Ele é fundamental para o processo de socialização da criança, uma vez que favorece a empatia, o altruísmo e dá indícios de que normas e regras sociais foram introjetadas. Nesse sentido, o sentimento de culpa pode ser descrito como uma mistura de sensações desprazerosas relacionadas a certo mal-estar e desconforto, sensações geralmente acompanhadas pela ideia de ter prejudicado ou de poder prejudicar alguém.
No que diz respeito à dimensão temporal da culpa, ela pode ser consequência direta de um comportamento, real ou imaginário, que provocou ou provocaria prejuízo a alguém. Ato de agressão ou violência física e verbal; acidentes ocasionados no trânsito; omissão de ajuda diante do sofrimento alheio; e ideias e fantasias contendo impulsos destrutivos direcionados a pessoas queridas são alguns exemplos em que a culpa aparece como consequência.
Entretanto, a culpa também pode anteceder ou acompanhar estados emocionais, percepções em relação a si mesmo e aos outros e atitudes destrutivas. Nestes casos, ela reforça sentimentos de tristeza e sensações de angústia e de insegurança; favorece o rebaixamento da autoestima e da autoimagem; é capaz de gerar uma raiva desmedida direcionada a outras pessoas; e produz autorecriminações e sacrifícios, como penitências ou restrições de desejos pessoais.
Nestas duas dimensões temporais do sentimento de culpa – a culpa como consequência e a culpa como causa – observamos algo em comum a seu respeito: seu caráter expiatório. Isso quer dizer que independentemente do momento em que vem à tona, o sentimento doloroso de culpa está em estreita associação à reparação ou correção de um erro mediante uma punição.
Desse modo, a culpa pode ser entendida ela mesma como a punição pela qual se deve pagar ou como o motor que proporciona atitudes punitivas.
Esse seu caráter expiatório pode ter desdobramentos importantes na vida de um indivíduo. Pessoas com uma necessidade inconsciente de punição, com dificuldades de tomar consciência do sentimento de culpa, podem sem perceber repetir situações de fracasso e dificultar que sejam bem-sucedidas ou reconhecidas. Isso ocorre justamente para satisfazer a necessidade inconsciente de punição, ou, ainda, para evitar a experiência de culpa que supostamente teriam caso alcançassem o sucesso ou o reconhecimento.
Outro exemplo consiste no sentimento de culpa resultante da repreensão interna que um jovem pode adotar frente ao desejo de ter maior autonomia e independência em relação aos pais. Tal desejo implicaria em seu afastamento ou “abandono” diante dos pais. Nesse caso, a culpa não só é o resultado deste conflito interno como também possui a função de manter o jovem dependente emocionalmente de seus genitores.
Outra maneira de conceber a culpa como o motor de atitudes compensatórias frente a algo considerado recriminável consiste no excesso de cortesia, zelo ou preocupação que uma pessoa possa apresentar diante de outra, o que pode ocultar sentimentos de hostilidade direcionados para ela.
Esses exemplos retratam, parafraseando Sigmund Freud, a “psicopatologia da vida cotidiana”, já que, por outro lado, a culpa está presente em graves psicopatologias, como nas depressões, nos distúrbios obsessivo-compulsivos, nos transtornos alimentares, em casos de drogadição e em perturbações da sexualidade, incluindo disfunções sexuais (mesmo em casos que possuem uma causalidade orgânica).
Entretanto, é importante ressaltar que não se trata de demonizar a culpa; ao contrário, ela é um sentimento inerente ao ser humano, de maneira que sua ausência ou demonstração incipiente é motivo de estranhamento para muitas pessoas e considerado patológico por diferentes segmentos da comunidade científica.
Dessa maneira, ela pode ser encarada com maior naturalidade e como uma oportunidade para que as pessoas possam ponderar e ressignificar sua ações e seus modos habituais de pensar e sentir. Ou seja, como oportunidade de aprendizado, a culpa favorece a construção da consciência moral e o amadurecimento emocional, aspectos aparentemente não tão comuns nos dias atuais.
(Colaboração de Marcelo Bosch Benetti dos Santos, Psicólogo, especialista em Psicologia Clínica, mestrando em Psicologia Clínica – PUC-SP).