
Há alguns anos publiquei um artigo nominado “A última revoada”, o qual versava sobre o contrabando de aves silvestres brasileiras, muitas delas figurando na lista de espécies em extinção. O Brasil contribui atualmente com mais de 700 espécies para a lista mundial de animais e plantas em extinção e pouco tem feito para evitá-la. É explícita a incapacidade da máquina fiscalizadora do estado dar conta de tantas veias de escoamento por onde fluem os animais indefesos ou os espécimes vegetais que muitas vezes ainda nem foram estudados e catalogados pelos cientistas brasileiros.
O Brasil reúne a maior biodiversidade do planeta que está se esvaecendo rapidamente devido aos altos índices de desmatamento. O estudo detalhado e a pesquisa básica dessa biodiversidade requerem urgência urgentíssima, pois certamente muitas espécies já desapareceram sem que de fato as tivéssemos conhecido.
Quem pode garantir que algumas delas não poderiam contribuir para o desenvolvimento de novos medicamentos capazes de aliviar o sofrimento de muitos?
Entretanto, em que pese todas as urgências e necessidades, as leis que regem os crimes ambientais parecem estar na contramão da história: ao invés de punir o biopirata e o criminoso ambiental que empobrecem o nosso país nos roubando e saqueando, vêm ironicamente punindo os cientistas. Como se já não bastasse esse estado de pobreza, essa onda de corrupção e esse cenário de desigualdade social tão explícitos em nosso país, criam-se leis por demais restritivas que inviabilizam definitivamente qualquer trabalho de campo dos cientistas brasileiros.
Farinha do mesmo saco
Há alguns anos a discussão sobre a Lei dos Crimes Ambientais (nº 9605/98) voltou à tona quando inúmeros cientistas do país manifestaram grande indignação e repúdio a acontecimentos envolvendo pesquisadores em crimes ambientais.
Um deles ocorreu quando o pesquisador Carlos Jared, do Instituto Butantan em São Paulo, enviou um pacote contendo 13 onicóforos – parentes distantes das minhocas – para um colega pesquisador alemão. Por conta disso, Jared foi multado em R$16.500,00 e ficou sob investigação da Polícia Federal pelo crime de biopirataria. Jared, na ocasião, era um dos pesquisadores mais ativos daquele instituto e havia publicado um artigo na renomada revista científica Nature em colaboração com o mesmo pesquisador alemão, destinatário dos onicóforos.
Outro acontecimento, este ocorrido no Amazonas, dá conta da coleta de 100 exemplares de mamíferos taxidermizados que foram transportados para a coleção Mastozoológica do Museu Paraense Emílio Goeldi, um centenário instituto de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia de Belém. Essa coleta rendeu ao pesquisador do instituto uma multa de R$51.500,00.
De acordo com as leis brasileiras, os atores dos acontecimentos cometeram de fato um crime ambiental por não terem autorização para executar essas coletas. Tal autorização requeria, entre outras coisas, descrição do projeto detalhado, curriculum do pesquisador, credenciamento da instituição na qual o pesquisador está vinculado, descrição dos grupos taxonômicos e/ou espécie cuja coleta é autorizada, informação sobre a região e localidades do território nacional onde a coleta é permitida, uma espera que pode levar de um a seis meses, e a elaboração de um relatório de atividades pós-coleta, discriminando o tipo, a quantidade e a procedência de todo o material coletado.
No caso de Jared certamente se fosse enfrentar essa penitência burocrática, as amostras de onicóforos teriam se estragado e o pesquisador alemão provavelmente não teria a possibilidade de realizar os seus estudos. O mesmo procede com o pesquisador do Museu Paraense, os mamíferos não agüentariam a espera.
Vale a pena observar que nas ciências nem sempre é possível prever determinada coleta. O encaminhamento da pesquisa leva a resultados e necessidades que estão além da capacidade do cientista prever. Outro fato comum é a troca de materiais entre pesquisadores no mundo, como fez Jared e seu par alemão.
Por isso, ambos atuantes pesquisadores da ciência brasileira com reconhecimento internacional foram colocados no banco dos réus, ao lado de biopiratas, traficantes de animais e devastadores de florestas. No mínimo, revoltante, o que me remete ao famoso romance O Processo de Franz Kafka publicado em 1925 (https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Processo).
Nem oito, nem oitenta
Segundo Miguel Trefant Rodrigues, pesquisador da Universidade de São Paulo, a Lei dos Crimes Ambientais “não presta para nada, não vigia 99% das coisas”. Isso porque quem formulou a lei não se deu ao trabalho de escutar quem realmente está envolvido com o trabalho ambiental: os cientistas.
O resultado não poderia ser diferente: por um lado, pesquisadores brasileiros são multados e investigados pela polícia como se fossem bandidos; por outro, 40 milhões de espécimes, entre animais e plantas, são contrabandeadas anualmente para o exterior.
Responda meu caro leitor, esse país é sério?
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).
Publicado na edição 10.678, quarta, quinta e sexta-feira, 29 e 30 de junho e 1º julho 2022.