O que há além do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade?

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Marcelo Bosch

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, o TDAH, é objeto de discussão dentro da comunidade científica há vários anos. Profissionais de diferentes formações, como médicos (pediatras, neurologistas, psiquiatras), psicólogos, neuropsicólogos, psicanalistas, pedagogos, filósofos e sociólogos se posicionam de diversas maneiras em relação à origem e aos desdobramentos da ação diagnóstica e dos tratamentos propostos para os indivíduos que apresentam o suposto transtorno.
O diagnóstico do transtorno é clínico, ou seja, não existem exames capazes de confirmá-lo ou excluí-lo, de maneira que ele é realizado através da observação atenta dos sintomas típicos de desatenção e hiperatividade (em sua frequência e intensidade), bem como a partir da coleta de informações a respeito do desenvolvimento como um todo da criança e da queixa principal apresentada. Tal procedimento de coleta de dados é realizado através de contatos com os pais, com a escola e com outros profissionais que acompanharam ou que acompanham o paciente. Além disso, o uso de instrumentos ou avaliações complementares pode auxiliar no processo diagnóstico.
A Classificação Internacional das Doenças, em sua décima edição (CID-10), denomina o TDAH de “perturbação da atividade e atenção” e o inclui em um grupo de transtornos denominado “transtornos hipercinéticos”. Nestes transtornos, atrasos no desenvolvimento psicomotor e da linguagem podem estar presentes, assim como dificuldades de leitura e outros problemas escolares, apesar de nenhum desses aspectos serem critérios para o diagnóstico. As características gerais deste grupo de transtornos consistem em: início precoce dos sintomas (geralmente surgindo nos primeiros 5 anos de vida e antes dos 6 anos de idade), desatenção marcante com falta de envolvimento e persistência nas atividades desenvolvidas, hiperatividade e impulsividade.
Essas três características básicas do transtorno (concentração comprometida, hiperatividade e impulsividade), que também pode acometer a pessoa adulta, se apresentam comumente da seguinte maneira:
• Concentração comprometida: falta de persistência e de organização na realização de tarefas, mudando com frequência de atividade e deixando-as inacabadas; constante distração e ou devaneios em excesso; dificuldade de “escutar” o que é dito (alteração no processamento de informação por déficit de atenção); esquecimento de compromissos e objetos; dificuldades de planejamento e de execução de atividades; e, vale mencionar, no caso de adolescentes e adultos é comum alteração da noção de tempo, superestimando-o em relação a seus compromissos, o que favorece a procrastinação;
• Hiperatividade: inquietação e agitação motora; ansiedade; loquacidade (fluxo acelerado do pensamento e da fala); e caráter disfuncional e sem propósito das ações;
• Impulsividade: dificuldade em inibir comportamentos inapropriados para a ocasião (como dificuldade em aguardar a vez e em postergar alguma satisfação); inconsequência; desinibição nos contatos sociais; interrupções e intromissões de atividades de outras pessoas; e imprudência em situações que envolvem perigo.
À parte tais descrições de comportamento, passíveis de observação e de constatação, as grandes controvérsias e discussões na comunidade científica em relação ao suposto distúrbio da atenção e da atividade giram em torno de outras questões. A saber: quais as bases e os critérios científicos que sustentam a afirmativa de que esses comportamentos são patológicos; quais as causas do problema (em que pesam hipóteses genéticas, neuropsiquiátricas e fatores psicológicos e sociofamiliares); os possíveis interesses políticos e econômicos por de trás da disseminação desenfreada de diagnósticos de TDAH e a subsequente prescrição de medicações específicas (medicações estimulantes como o metilfenidato e as anfetaminas); e as consequências psicossociais e de saúde para aqueles que recebem o diagnóstico e se submetem a alguns dos tratamentos disponíveis.
Quanto à prescrição de medicações estimulantes (no Brasil comercializadas pelos nomes de Venvanse, que corresponde à lisdexanfetamina, e Ritalina®, Ritalina LA® e Concerta®, que correspondem ao metilfenidato), tais medicações, mesmo que validadas pelos órgãos governamentais competentes, são questionadas por parte dos pesquisadores, intelectuais e profissionais das áreas de saúde e educação em vista, por exemplo, de seus efeitos colaterais, que podem atingir diferentes sistemas do organismo, como o Sistema Nervoso Central, o Sistema Cardiovascular, o Aparelho Gastrintestinal e o Sistema Endócrino-metabólico. Mas ao mesmo tempo, há pacientes que se beneficiam da medicação e com ela tem seus sintomas controlados, favorecendo o processo de mudança de comportamento.
Em meio a todo esse impasse, o que se sabe é que não há, ao menos até o momento, uma causa ou condição tida como necessária e determinante para as alterações de comportamento em questão. Aliás, ao contrário, se defende que a elas estão associados diferentes fatores, como o equilíbrio neuroquímico, a qualidade e o tempo de sono do indivíduo, a dieta por ele adotada – como defendem alguns clínicos -, aspectos neuropsicológicos e emocionais, práticas educativas e pedagógicas nas quais a criança está submetida, assim como o contexto político e socioeconômico mais amplo.
Por outro lado, além das discussões científicas – que são fundamentais e necessárias, válido reforçar -, ocorre que há pessoas que apresentam as características de comportamento tidas como problemáticas, e que muitas vezes sofrem por isso. Para esses casos, principalmente para as crianças e adolescentes, um ambiente estruturado (com regras explícitas, objetivos claros e monitoramento externo próximo) que ofereça constante acolhimento, firmeza e continência, bem como um acompanhamento profissional individualizado junto à rede de apoio são medidas básicas para o enfrentamento das dificuldades.
Vale esclarecer que o acompanhamento profissional em rede de apoio consiste no trabalho transdisciplinar realizado entre diferentes profissionais de ajuda (como psicólogo, psicopedagogo, pediatra, psiquiatra, neurologista e ou fonoaudiólogo) que deve ocorrer – com pacientes em idade escolar ou universitários – em parceria com os pais e com a escola / universidade.
Por fim, reiteramos que o trabalho especializado potencializa as possibilidades de mudança inclusive para os adultos, que por vezes percebem as consequências problemáticas de seus comportamentos de desatenção e hiperatividade tardiamente. Ainda, não esqueçamos que, neste cenário todo, cada sujeito é único e possui a sua história de vida, de maneira que o TDAH ou qualquer outra nomenclatura que tente delimitar uma experiência subjetiva de sofrimento, não deve ofuscar ou anular o sujeito em sua verdade e em sua autonomia.

(Colaboração de Marcelo Bosch Benetti dos Santos, Psicólogo, especialista em Psicologia Clínica, mestrando em Psicologia Clínica – PUC-SP).