Sem vagas em leitos e com profissionais exaustos, a Saúde pede socorro

Em visita ao Hospital Estadual, Gazeta conhece a realidade da unidade e de seus colaboradores diante do pico mais alto da pandemia no país.

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Cenário desafiador – Com 20 leitos de UTI ocupados e fila de internação de mais 50 pacientes na DRS-5, o Hospital Estadual enfrenta seu maior desafio diante da pandemia: enquanto pacientes lutam para sobreviver, profissionais lutam contra a exaustão.

“Estamos muito cansados, exaustos”; “não temos mais leitos, não dá para atender todo mundo”; “sem distanciamento, podemos abrir 100 leitos de UTI e todos vão se encher em pouco tempo”; “nós precisamos da conscientização da população”. Estas são falas reais e desesperadas de profissionais de saúde que, há um ano, vivem a pandemia em seu cotidiano e estão preocupados com a situação epidemiológica do município, do Estado e do país.

Atendendo ao convite do gestor administrativo do Hospital Estadual de Bebedouro, Everton Zem, a Gazeta de Bebedouro conheceu as instalações da unidade de alta complexidade, especializada no atendimento aos pacientes diagnosticados com Covid-19. “Preparado para uma guerra”, como diz o gestor, o Hospital mostra sua alta capacidade de atendimento diante do mais alto pico da pandemia no Brasil, mas também alerta para o colapso sanitário que tornou-se realidade, em unidades de saúde de todo o país.

O Hospital Estadual iniciou seus atendimentos em Bebedouro em agosto de 2020, sob gestão médica-administrativa da Fundação Pio XII, através da rede Hospital de Amor. Através de pedido do Codevar (Consórcio de Desenvolvimento do Vale do Rio Grande), por intervenção do ex-prefeito Fernando Galvão e do deputado federal Geninho Zuliani, o Estado de São Paulo adiantou a abertura do Hospital, de forma emergencial, apenas para atendimento de infectados pelo novo coronavírus.

Nestes sete meses na cidade, atendendo Bebedouro e demais municípios da DRS-5 (Diretoria Regional de Saúde de Barretos), 488 pacientes já passaram pelo Hospital, para internações graves e leves. Destas, 142 morreram nos leitos da unidade e 269 tiveram altas médicas para retornarem às suas casas. Os dados foram compilados pela gestão da unidade, até a manhã de quarta-feira (24).

Hoje, com setor de UTI dividido em duas áreas, somando 20 leitos, além de outros 20 de enfermaria, com suporte de ventilação mecânica, o Hospital Estadual auxilia na alta demanda de internações da DRS-5, que até a manhã de quarta (24), registrava mais de 50 pessoas na fila de espera para internações em UTI.

Quem faz

Acompanhados do gestor Everton Zem e do gerente de enfermagem do Hospital, Leonardo de Matos, jornalistas da Gazeta, paramentados da cabeça aos pés, visitaram todos os setores da unidade de saúde, conhecendo o funcionamento do prédio e a realidade dos profissionais.

Durante o tour, além do cenário chocante dos leitos ocupados, chama atenção o amor dos colaboradores na função que desempenham. Junto do olhar cansado, um sorriso no rosto destaca-se, mesmo por debaixo da máscara. O “bom dia” faz parte do vocabulário de todos os funcionários, pelos corredores da unidade.

Segundo Matos, o Hospital Estadual conta com cerca de 230 colaboradores, dentre médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, odontologistas, engenheiros, farmacêuticos, nutricionistas, cozinheiros, auxiliares administrativos e de limpeza, entre outros, que revezam-se em turnos periódicos, para manter o funcionamento do Hospital 24h/dia.

“Nossa rotina diária é muito intensa. Os funcionários estão sobrecarregados, trabalhado sem descanso e em clima de tensão, pela gravidade dos pacientes, que demandam muita atenção, principalmente, porque os casos evoluem muito rápido. Hoje, todos os nossos pacientes, seja de UTI ou enfermaria, são casos graves e requerem atenção constante”, diz Matos, lamentando: “estamos muito cansados, exaustos”.

A situação, além de tensa, segundo Matos, é constrangedora, porque alguns colaboradores desdobram-se para salvar vidas diariamente, sofrem com seus próprios familiares sem leitos vagos. “E não podemos fazer nada para ajudá-los”, emociona-se.

Durante a visita da Gazeta, Matos recebeu mensagem de uma de suas colaboradoras, que estava com o pai internado, esperando um leito de UTI, dizendo: “Infelizmente, meu pai veio a falecer, mas obrigada por tudo”. Emocionado, o gerente de enfermagem lamenta: “Nós fazemos tudo que está ao nosso alcance, mas não está sendo suficiente”.

Não há vagas

O Hospital Estadual dividiu seus leitos de UTI em duas áreas, uma delas no terceiro andar, lugar pré-determinado na planta do prédio, e agora no térreo, onde deverá ser o setor de Pronto Atendimento. Cada uma com 10 leitos, que permanecem todos ocupados há semanas.

“Percebemos que alguns estavam falecendo, não pela Covid, mas por contaminações cruzadas no ambiente hospitalar. Por isso, optamos por reduzir o número de leitos em cada espaço. O gasto é dobrado, porque são duas equipes, mas nossa preocupação é com vidas, não com gastos”, afirma Zem.

A imagem da UTI lotada é daquelas que fica gravada na mente por dias. Pacientes inconscientes, intubados, com sondas, medicação intravenosa. Naquele ambiente, não importa beleza, joias, roupas da moda ou situação financeira. Todos são iguais, buscando pela oportunidade de viver, pelo simples ato de poder respirar.

“Vivemos em um cenário caótico, com colapso dos atendimentos em todos os municípios, UTIs, enfermarias e pronto-socorros lotados. Nós atendemos via Cross (Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde) os pacientes já regulados com ficha de aceitação, ou seja, que já passaram pelo pronto-atendimento e já foram identificados como pacientes Covid. A partir do momento em que o paciente é inserido no sistema, uma equipe médica avalia sua situação e faz o transporte para a cidade determinada. Mas para atender esse paciente, é simples: precisa ter vaga. E hoje, nós não temos. Infelizmente, precisamos negar fichas reguladas, pela falta de capacidade”, diz o gestor entristecido.

“Infelizmente, são raras as situações em que o paciente deixa a UTI por recuperação. Na maioria dos casos, os leitos só ficam vagos, em caso de morte”, lamenta Zem. Segundo o NIR (Núcleo Interno de Regulação) do Hospital Estadual, responsável por organizar todas as saídas e entradas dos pacientes via Cross, há mais de 3 mil pacientes não aceitos em hospitais do Estado, em filas de espera.

O que falta

Segundo os especialistas, a Saúde brasileira vive uma nova realidade, diferente da vista no início da pandemia, em 2020. Com maior necessidade de internações graves e maiores índices de contaminação, os sistemas de saúde reinventaram-se para suportar esta demanda maior.

Uma UTI convencional, segundo os profissionais, não exige nem 50% do necessário na UTI Covid, com pacientes intubados, fazendo hemodiálise e usando medicação vasoativa, processos que exigem ainda mais da equipe médica e da enfermagem.

“Na primeira onda, percebíamos que os pacientes ficavam menos tempo internados, precisavam menos de oxigênio e a gravidade da doença era menor. Hoje, o perfil mudou: são muitos pacientes jovens, até com menos de 30 anos, sem comorbidades, com maior dependência de oxigênio, maior uso de drogas vasoativas e sedativos, que permanecem mais tempo em internação”, destaca Matos, justificando possíveis motivos para este recente cenário: “Percebemos que o final de ano foi o grande agravante, porque as pessoas se reuniram e viajaram mais. Pouco tempo depois, veio o Carnaval e o surgimento de novas variantes, que agravaram ainda mais a situação. É como se a população estivesse se acostumado a conviver com a pandemia, a andar pelas ruas sem máscara e a não se importar com quem está morrendo pelo vírus. Quem passa em frente ao Hospital, não imagina como é nosso dia a dia aqui. O que falta no ser humano é a empatia, é saber se colocar no lugar do outro. Se uma pessoa não tem um familiar internado ou não perdeu alguém próximo, não consegue enxergar o tamanho da dor alheia e como suas atitudes geram consequências que atingem toda uma sociedade”, analisa o gerente de enfermagem.

Referência

O gestor do Hospital é enfático quanto à unidade que gere: “Bebedouro e região foram contemplados por uma estrutura como essa. É muito mais que um hospital de campanha. O nível muito superior ao que oferece o SUS (Sistema Único de Saúde. Bebedouro tem, na saúde pública, um hospital de nível particular”, afirma Zem.

“Não tenho sigla partidária, mas preciso destacar o papel da administração pública do município para colocar este Hospital em funcionamento. O que foi feito pelo ex-prefeito Fernando Galvão e pelo atual prefeito Lucas Seren, em parceria com o Estado de São Paulo, permitiu que o Hospital estivesse 100% preparado, através da gestão inteligente do Hospital de Amor. Tudo o que pedimos ao município, é atendido ‘pra ontem’, porque nosso prazo é curto, temos vidas em jogo. É por isso que acreditamos neste Hospital e investimos tanto nele. Nenhuma instituição caminha sem apoio municipal, sem estar lado a lado com a Secretaria de Saúde do município. E nisso, a população deve ser grata à Prefeitura de Bebedouro. Por isso, somos referência em tratamento da Covid”, destaca o gestor.

Através deste apoio do município junto ao Governo de São Paulo, segundo Zem, é que está em fase de tratativas, a abertura de novos 10 leitos para enfermaria. Porém, o gestor destaca: “se não houver mudança no comportamento das pessoas, os leitos vão continuar lotados. Sem distanciamento social, podemos abrir 100 leitos de UTI e todos vão ser ocupados em pouco tempo. É como enxugar gelo”.

Sem profissionais, sem saúde

Não há mais profissionais suficientes para dar conta da demanda crescente de internações e casos no Brasil. A abertura de novos leitos está atravancada pela ausência de recursos humanos. Em Bebedouro, o cenário se repete: “A realidade do Brasil hoje é falta de UTI, de medicamentos, de equipamentos, de oxigênio, mas principalmente, de recursos humanos. Espaço físico nós temos de sobra, mas estão em falta, enfermeiros, equipe multidisciplinar e médicos. Sem eles, o hospital não trabalha. E eles, que já estão sobrecarregados, vão ficar ainda mais, mas devemos tomar cuidado também para não ‘colapsar’ estes profissionais, através do desgaste físico e mental”, ressalta Everton Zem, preocupado.

Evitando o inevitável

Hoje, a preocupação nacional é com a falta de oxigênio, chamado de gás medicinal, para os pacientes intubados. Felizmente, no Hospital de Bebedouro, não há este problema: “Era previsível que unidades de pronto atendimento fossem sofrer com este cenário, porque usam ‘torpedos’ (cilindros), que não são indicados para sustentar UTIs de alta complexidade. Felizmente, aqui, estamos bem equipados e preparados. Pensamos à frente do nosso tempo e nos preparamos para a chegada da segunda onda, aumentando nossas próprias usinas de gás medicinal. Não teremos esta falta”, garante Zem.

Segundo Daniel Tuissi, responsável pelo setor de engenharia e pela manutenção dos equipamentos usados nos leitos de UTI e enfermaria, além das usinas de gás medicinal, o Hospital já tinha uma usina de oxigênio, com boa capacidade, mas prevendo possível colapso do sistema, com a segunda onda, uma nova usina foi construída.

“Nós produzimos nosso próprio oxigênio aqui. Os cilindros fazem captação do ar, transformam em comprimido, passa pela secadora tirando todas as moléculas de água do ar, transforma em ar tratado, que depois vira o oxigênio que é enviado aos pacientes. A antiga usina tem capacidade menor, enquanto a nova, dá conta de toda demanda do hospital, com sobra. Temos backup do backup (risos). Se uma usina falhar, temos a segunda. Se a segunda falhar, temos reservas de cilindros”, explica o engenheiro, acrescentando que há também manutenção preventiva constante em todos os equipamentos, para evitar manutenção corretiva. “Acreditamos que 99% dos problemas podem ser evitados e nossa filosofia é fazer o possível para evitá-los”.

Tornando o dia mais leve

Para dar suporte emocional aos colaboradores, diante de todas as dificuldades e o cansaço que eles têm enfrentado, o Hospital de Amor, responsável pela gestão do Hospital Estadual, mantém trabalho importante com criação de campanhas e dinâmicas semanais, além de atividades de integração em grupo.

“Por exemplo, para a próxima semana, estamos prevendo a entrega de cartas de apoio aos funcionários, com desenhos feitos pelas crianças da ala infanto-juvenil do Hospital de Amor, para que entendem mais do que nunca, que são fundamentais para salvar vidas e sua importância para o Hospital de Amor. Em momento algum, podemos pensar em desistir, porque se um de nós cai, todos caem”, diz o gerente de enfermagem.

Empatia

Todos os setores da unidade fazem seu papel para melhorar o dia um do outro. A área de Nutrição, por exemplo, responsável pelo preparo de todas as refeições, desde o alimento dos funcionários até o dos pacientes, preocupa-se em tornar mais leve o dia a dia de quem está no hospital. Na quarta-feira (24), em comemoração aos 59 anos de fundação do Hospital de Amor, foi preparado bolo de chocolate e refrigerante para sobremesa.

Mais para a saúde

Para agilizar a abertura do Hospital, a Fundação Pio XII destinou a Bebedouro unidade móvel de tomografia, instalada em uma carreta, do lado externo do prédio. Segundo Matos, inicialmente, a proposta era atender apenas os pacientes com Covid do Hospital, porém, foi identificado que pacientes do município eram encaminhados para Barretos, para fazer tomografia e depois voltavam ao seu hospital de origem. “Com a carreta, oferecemos mais agilidade no tratamento, evitando deslocamento desnecessário e acelerando os tratamentos”, ressalta o gerente de enfermagem.

Espaços adaptados

A previsão para conclusão do Hospital Estadual, em 100% de sua capacidade, era ao final de 2020, mas a pandemia não permitiu esperar. O espaço que estava ocioso, transformou-se em um dos principais centros de tratamento ao vírus na região, e muitas salas que seriam destinadas a outras funções, foram adaptadas para atender a demanda urgente.

A sala que seria de recuperação pós anestésica, por exemplo, transformou-se em espaço de treinamentos para os novos colaboradores. “A maioria é de enfermeiros novos, recém formados e com pouca experiência. Nós os treinamos com os profissionais mais experientes e também promovemos estes treinamentos específicos. Cada semana, escolhemos um procedimento. Nesta, por exemplo, usamos um boneco (manequim de treinamento) para treinos de parada cardiorrespiratória”, diz Matos.

O que na planta original seria uma sala no centro cirúrgico, transformou-se temporariamente em espaço para orações e preces. Através de doações da Paróquia de Nossa Sra. Aparecida, um altar com bíblia, imagem de Cristo e velas, foi instalado para que os colaboradores usem da fé para reavivar suas forças e dar sequência ao árduo trabalho.

Os espaços do estoque também foram adaptados para comportar todos os medicamentos, EPIs e insumos. E a farmácia, sob coordenação da bebedourense Michelli Fávero, não está no lugar previsto, mas foi organizada para atender ao hospital 24h. “A organização ainda não é o padrão Hospital de Amor, mas está dentro das nossas condições de espaço. Tudo aqui é registrado de forma 100% informatizada, com rastreabilidade. Todas as medicações necessárias aos pacientes, nós temos em estoque. Nada aqui está em falta. Os remédios para intubação, por exemplo, que estão escassos e com preços mais elevados, ainda temos, mas também estamos nos adaptando para substituí-los por outros, que desempenham a mesma função e podem ser encontrados com mais facilidade no mercado”, destaca a farmacêutica.

A unidade possui também laboratório 24h, que colhe exames de Covid-19 e envia para análise, além de realizar no local, resultados de exames de sangue e urina em até 12h, agilizando processos e oferecendo tratamento mais rápido.

Pedido de socorro

“Não é momento de fazer visitas e almoços em família. Fiquem em casa. Nós estamos cansados de ver caixões saindo daqui lacrados”. O pedido de socorro é do gerente de enfermagem Leonardo de Matos. Há um ano na linha de frente de combate ao vírus, o gerente emociona-se ao dizer que há meses não vê a mãe, porque sabe que se ela se contaminar, não haverá leitos para atendê-la.

“Usem o artifício da internet e das chamadas de vídeo para ver quem vocês amam, mas mantenham-se em casa, por favor. Não é momento de reunir pessoas e não há previsão para que este momento chegue”, implora o gerente de enfermagem, aproveitando para deixar sua gratidão aos colegas profissionais de saúde: “Vocês tem minha gratidão e o mais sincero desejo de força e foco. Vocês são muito importantes para o cumprimento da nossa missão de salvar vidas. Sinto-me honrado em fazer parte deste time e, no futuro, quero contar aos meus filhos e netos sobre como pude ser útil à maior crise sanitária já vivida. Obrigado de coração a quem se dedica e se arrisca pela saúde pública. Que Deus possa iluminar o caminho de vocês”, deseja Matos.

Publicado na edição 10.566 de 27 de março a 1º de abril de 2021.