Quando foi anunciada como novela original Globoplay, ‘Todas as Flores’ teve muitos dedos apontados com teores negativos, principalmente dos que acusavam a Globo de boicotar e diminuir a trama desenvolvida por João Emanuel Carneiro. No entanto, bastou a novela estrear no streaming que muitas bocas se calaram. Com enredo enxuto, capítulos eletrizantes e personagens que caíram nas graças do público, o autor entregou uma sofisticação em forma de novela nos primeiros 45 capítulos.
‘Todas as Flores’ cumpriu seu papel de ser uma novela para o streaming. A proposta era justamente esta, apresentar ao público que se rende, cada vez mais, ao universo dos conteúdos on-demand, que a boa e velha novela cabe, perfeitamente, neste cardápio tão consumido. Claro que a Globo já havia tido uma primeira impressão com o sucesso da segunda temporada de ‘Verdades Secretas’, mas ‘Todas as Flores’ é o impulso maior, pois começou do zero. Ao contrário da trama de Walcyr Carrasco, a narrativa de Carneiro não tinha fãs, não tinha uma história consolidada, era como começar uma novela do zero, igualzinha na TV aberta, só que no streaming.
Com isto, todos os ingredientes de novela estavam presentes dentro de ‘Todas as Flores’ e a emissora inovou na forma de distribuir os capítulos ao público, toda quarta-feira, cinco novos chegavam ao catálogo e era possível maratonar, ação tão praticada atualmente pelos amantes das séries. A edição rápida e os acontecimentos mais ágeis ajudaram a primeira parte da novela, em 45 capítulos, conquistar uma geração de fãs e, literalmente, fazer história.
Eis que há uma pausa de quase quatro meses até a volta para a segunda parte, com mais 40 capítulos que fecharam a obra de 85, já inteiramente gravada. O público atônito pela vingança da protagonista Maíra (Sophie Charlotte), contra a mãe má Zoé, de Regina Casé e da irmã Vanessa, papel de Letícia Colin, e é nesta etapa que o autor começou a entregar alguns déficits ao telespectador.
O problema maior, talvez, seja a alta expectativa. Notório é, para muitos, que a história, nos capítulos finais, se perdeu. Muitas sequências sem pé, nem cabeça. Alguns personagens tomando atitudes sem sentido e subestimando a inteligência do público. Apesar de diversos furos, a obra não perdeu seu valor e o saldo seguiu positivo. Carneiro fisgou a audiência e despertou curiosidade de quem assistia sua narrativa, fazendo com que, independente do que ele escrevesse, o público não iria soltar sua mão, mesmo com duras críticas. ‘Todas as Flores’ instiga o espectador a todo o momento.
Sequência absurda como a de Zoé se arrastando por um longo caminho com as duas pernas quebradas, desenterrando o corpo de Galo, sacando uma arma e ainda conseguindo matar seu grande amor, só podem ter sido colocadas ali para impressionar. E conseguiu. Faz sentido? Não! Mas impressionou e instigou a audiência a querer saber como seria este desfecho.
Apesar de toda confusão, o final foi o que mais frustrou. Onde está a tão aguardada vingança de Maíra que, desde o primeiro capítulo, foi vendida para o público? Não aconteceu. Uma sequência eletrizante totalmente montada no cenário que fechou o penúltimo capítulo, tinha tudo para o diretor criar um acerto de contas épico, com muitos tapas, puxões de cabelos e a destruição que o público da novela espera ver. Ingrediente principal da novela é o confronto final entre mocinha e vilã e isto não aconteceu, pelo menos, não da maneira como a expectativa do público aguardava. E, se existiu esta expectativa é porque, em algum momento, esta semente foi plantada.
Ainda assim, Carneiro sai absolvido deste julgamento. O autor entregou boas sequências e Regina Casé e Letícia Colin fizeram história. Seguraram a trama do começo ao fim e foram bem respaldadas por Thalita Carauta e sua ótima Mauritânia; Fábio Assunção que entregou muitas cenas boas com seu mau-caráter Humberto e Mariana Sousa Nunes com sua Judite, que lançou bordões que ainda serão repetidos muitas vezes nas ruas.
O maior erro da novela, além do final sem o ingrediente principal, foi apostar nos núcleos paralelos. Por ser uma novela para o streaming, que fique de lição para que as próximas não o façam. Em nada acrescentou para a história principal, o núcleo de Oderban e Jussara, bem como os da família de Mauritânia. Mesmo assim, o da família se sobressai, ainda consegue ter fôlego com a narrativa da ex-prostituta que agora é milionária e lutou para conquistar o amor da filha, mesmo não conseguindo totalmente. Já o resto, dispensável.
O final que Carneiro deu para Pablo, de Caio Castro e Humberto, de Fábio Assunção, também mostra uma coisa boa, de que as pessoas não mudam por completo. Elas até se redimem, pedem perdão, amam, sentem, choram e sofrem, mas a ganância quando é alta, não desfloresce dentro do ser humano. Judite, de Mariana Nunes, conseguiu terminar bem, feliz, mostrando-se libertada, como se a personagem tivesse entendido que fez tudo o que estava a seu alcance para criar o filho, mas que se a vontade dele é outra, o que resta a ela é seguir em frente. Maíra e Rafael, como mocinhos tradicionais, terminaram juntos, já era de se esperar. O casal precisou, o tempo todo, das ações das vilãs para renderem cenas boas, mas o carisma de Sophie Charlotte e Humberto Carrão seguraram a onda. E as vilãs, Vanessa e Zoé, não poderiam ter outro desfecho, as duas terminam entregando o que propuseram desde o início: carisma, vilania e muita autenticidade.
“Todas as Flores”, mesmo blindada da grande massa pelo streaming, conseguiu ser assunto nas ruas, nos ambientes de trabalho e nas redes sociais, provando que o gênero não morreu. Com isto, o Globoplay já prepara a terceira e a quarta novela original da plataforma. Em 2024, ‘Guerreiros do Sol’, escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, deve estrear com direção de Rogério Gomes e, Manuela Dias já trabalha no desenvolvimento de mais uma produção.
A Globo quis provar que novela também é sucesso no streaming e conseguiu. ‘Todas as Flores’ fez história, mesmo com diversos tropeços, mas acertou muito ao mesmo tempo. Nota 8,9. É assim que se constrói um novo caminho, com erros. Esta foi a primeira e o público a comprou, que venham as outras e que a novela, esta boa e velha senhora de 70 anos, renasça, como uma fênix e sobreviva por mais setenta.
Publicado na edição 10.761, quinta a terça-feira, 8 a 13 de junho de 2023 – Ano 99