
Os brasileiros possuem um estigma de serem extremamente passivos frente às desfavoráveis conjunturas sociais. Sofremos calados. É difícil analisar se a aparente verdade dessa característica brasileira poderia se manter quando analisada sob a óptica das estatísticas. Por exemplo, se fizermos uma rápida consulta sobre as revoltas ocorridas no Brasil nos séculos mais recentes, enumeramos um bom número delas: Revolta dos Malês (1835), Revolução Praieira (1849), Quebra-Quilos (1874), Revolta do Porecatu (1951), a Revolta Popular de Trombas e Formoso (1954), Revolta da Cantareira (1959), entre outras. Recentemente poderíamos computar alguns movimentos sociais a essas revoltas, como a oposição à ditadura militar ou o movimento diretas- já. Mas nenhum deles poderia alcançar a situação de revolta em si, embora tenha emanado do povo.
O fato é que as revoltas aconteceram e fizeram história nas várias regiões do país. Uma, em especial, marcou a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Foi chamada Revolta da Vacina, ocorrida em 1904.
O contexto
Rio de Janeiro, maior cidade portuária do Brasil na época, viu sua população explodir em crescimento entre os anos de 1872 e 1890. O aumento foi de cerca de 90%. A infraestrutura da cidade, por sua vez, lamentavelmente não acompanhou tal fenômeno de grandeza. A população, completamente empobrecida, vivia em cortiços ou casebres espalhados por um labirinto de ruelas sujas e estreitas. O cenário era o mais adequado possível para a disseminação de doenças como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. E elas existiam em índices alarmantes, tanto que companhias de navegação européias anunciavam “viagens seguras” para a Argentina, sem o aporte no Brasil.
Rodrigues Alves, presidente recém empossado, tinha um plano para transformar o caos da capital federal em história. Iria efetuar a necessária higienização e urbanização da cidade e a vacinação da população. Tarefa importante, mas que se mostrou ingrata.
A lei e suas conseqüências
Alves, com o apoio do prefeito do Rio, Pereira Passos, e do médico sanitarista Osvaldo Cruz, criou uma lei federal em 31 de outubro de 1904 que tornava obrigatória a vacinação da população contra a varíola. A população, ignorando completamente as origens das epidemias (por exemplo, o mosquito da febre amarela e a pulga da peste bubônica), desqualificou os motivos e as ações do governo, que, representados pelos sanitaristas, geralmente era obrigado a entrar forçosamente nas casas dos moradores para realizar a vacinação.
Em outra ação paralela o governo devastou todos os cortiços da cidade, obrigando sua população desassistida a fugir para os morros afastados.
Estes atos, de intenções altruístas, mas de características ditatoriais, foram os estopins da revolta.
A população descontente começou a se manifestar veementemente no início de novembro e os opositores do governo, aproveitando a situação delicada, iniciaram uma pressão com a criação da Liga Contra a Vacinação Obrigatória.
Não demorou muito e o caos instalou-se na cidade. Aos revoltosos aliou-se a Escola Militar de Praia Vermelha, insatisfeita com o governo de Alves. Um golpe militar estava surgindo no ceio da revolta, arquitetado para eclodir em todo o país, principalmente em estados do centro-oeste e nordeste, como Bahia e Pernambuco.
No Rio de Janeiro, bondes foram tombados, postes de luzes foram derrubados, vidraças foram quebradas e tiros foram disparados. O governo, face à delicada situação, agiu duramente contra os revoltosos e insurgentes obtendo um resultado de 28 mortes, centenas de feridos e 949 presos. Apesar das estatísticas, o contexto da revolta, suas causas e conseqüências demonstraram que as idéias de Alves e Cruz, apesar de estrategicamente equivocadas (o povo não foi consultado e nem esclarecido sobre os planos de vacinação), foram fundamentais para por fim ao atraso colonial que imperava no Rio de Janeiro e no país.
Um fato singular deve ser ressaltado, porém: os moradores dos cortiços desalojados pelo governo na época, foram os fundadores das atuais favelas dos morros cariocas.
Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação.
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Publicado na edição nº 10299, de 16 e 17 de agosto de 2018.