A luta do poder pelo poder

Gaudêncio Torquato

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Nas grandes democracias ocidentais, a luta pelo poder tem, como pano de fundo, fronteiras ideológicas. O alvo é a chegada ao poder para implantar programas compatíveis com as demandas populares, vistas sob a lupa de partidos e facções. Nos EUA, por exemplo, a maior democracia ocidental, os slogans procuram resgatar ideários. Trump, o ex-presidente que é réu, procura se acolher sob a sombra do MAGA (Make America Great Again). Biden esboça o ideário da grandeza americana e seu papel na liderança internacional.

Por aqui, observa-se um retrocesso. A disputa até levava em conta programas banhados por doutrinas e os partidos de esquerda, a partir do PT, brandiam as bandeiras do socialismo. O PSDB, as bandeiras da social-democracia. Recentemente, o bolsonarismo levantou os véus do conservadorismo. Coisa de extrema direita, como armamento da sociedade e defesa de temáticas polêmicas como educação nas escolas, política dura na área dos gêneros, imunidade das igrejas evangélicas, inserção dos militares na política etc. Nada resistiu, porém, às forças que têm chegado ao poder, iluminadas pelo lema: o poder pelo poder.

O PT velho de guerra ensaia a volta de programas de certo verniz doutrinário, mas monta um superministério, que confere ao Estado um corpo paquidérmico, para agradar os partidos que apoiam o governo. Adere ao poder pelo poder. É impensável que a sombra da política cubra a estrutura administrativa.

Voltemos aos dias de ontem. Tornou-se célebre o dito de John Kennedy: “Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela América”.  A frase ofuscou-se na névoa do tempo. A força doutrinária tem perdido pontos mesmo nos EUA. Os partidos já não acendem aquela chama de civismo que tanto maravilhou Alexis de Tocqueville, há mais de 200 anos, quando o jovem advogado de 26 anos foi enviado pela França para estudar o sistema penitenciário estadunidense.

Descrevia ele em sua clássica obra sobre a democracia americana: “Os grandes partidos são instrumentos que se ligam mais a princípios que a suas consequências, às generalidades que aos casos particulares, às ideias e não aos homens”. A queda de braço entre as duas estruturas que se revezam no poder mostram que a balança dos pesos e contrapesos está precisando de reparos. A política, lá como aqui, refunda-se sob a égide do salve-se quem puder. A polarização cheia de ódio chegou para disseminar a desunião da sociedade. O altruísmo, valor tão enaltecido pela democracia norte-americana, cedeu lugar ao pragmatismo; o fervor social esfria, basta ver a avaliação negativa que a população confere a seus presidentes, passado a euforia eleitoral.

Sob uma teia de tensões, os EUA vivem esta segunda década do século 21 com a imagem de liderança mundial em processo de declínio. Quais as razões para tal mudança de paradigma? A principal causa aponta para a alteração da fisionomia política na sociedade pós-industrial. A política deixa de ser missão para se tornar profissão, desvio que ocorre na esteira do desvanecimento das ideologias. Ademais, o motor econômico, principalmente na moldura da globalização, passou a movimentar a máquina política, como se aduz dos atuais embates que os EUA travam com a China e a Rússia, sob a ameaça de nova Guerra Fria e temor de uma III Guerra Mundial. Ideários e escopos doutrinários perdem substância. A imagem de misseis nucleares povoa as mentes.

O fio desse rolo já chegou até aqui. O que ocorre no Brasil tem que ver com a prática da intransigência, do impasse político e da polarização entre situação e oposição. Desde outubro do ano passado, política não dá trégua aos competidores. A gana pelo poder é tão desmesurada que os climas eleitorais se intercambiam. Bolsonaro, o capitão, enrolado em pacotes de joias, ensarilha as armas. Lula arruma a voz.

O teatro do pleito de 2026 está sendo montado. No Brasil, é assim. A eleição seguinte começa logo depois da apuração dos resultados da eleição anterior. Nos espaços governativos de todas as instâncias, programas e projetos, mesmo os mais abrangentes, comportam ações de cunho eleitoreiro. Políticas de longo prazo, nem pensar. O Brasil é o território do “aqui e agora”.

A ausência de estratégia de longo prazo deriva da efervescência eleitoral que impregna o ânimo dos conjuntos. Não se abre espaço para a busca de consenso entre blocos de um lado e de outro a respeito de temáticas relevantes. A disputa obedece a uma lógica que Thomas Hobbes cunhou de política de golpes preventivos: A teme que B ataque e decide atacar primeiro, mas B, temendo isso, quer se antecipar, fazendo que A, pressentindo o golpe, tente reagir, e assim por diante. O ataque não abriga armas de destruição ideológica (até porque as ideologias estão no fundo do baú), mas movimentos táticos. Repito: as clivagens do passado, originadas em antagonismos de classes, perdem sentido no fluxo da expansão econômica e da subida de parcelas das margens sociais ao centro da pirâmide.

Servir à polis é algo que não entra nas cacholas. As alianças eleitorais não são firmadas sob ideários. O contrato de hoje pode se desfazer amanhã.

(Colaboração de Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político).

Publicado na edição nº 10.749, sábado a quinta-feira, 15 a 20 de abril de 2023