A miopia do consumo

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O século XXI chegou a reboque de uma exacerbada explosão consumista. Pautado pela estabilidade econômica que garantiu fartura de crédito, ir às compras se tornou um dos maiores prazeres da população, um verdadeiro ponto de fuga para os problemas do cotidiano.

Esse cenário, se bem analisado, nos leva a duas vertentes de reflexão: o da justiça para com a população, que se viu sempre privada dos requisitos mínimos para uma vida descente devido à latente herança do subdesenvolvimento; e a do desequilíbrio que o próprio consumo sem consciência e controle leva.

Embora possa parecer paradoxal – e até injusto – o fato é que o consumo desenfreado tem levado o mundo a enfrentar problemas que até então, ou foram varridos para debaixo do tapete, ou minimizados como de pouca importância.

Numa visão mais externa, notamos a inexorável questão climática. Refém da galopante industrialização, as instâncias que guarnecem o equilíbrio natural do planeta há tempos já predizem um futuro nada promissor para a humanidade. A produção exponencial de lixo, a devastação das florestas e a liberação perene de CO2 na atmosfera são alguns dos exemplos mais explícitos de como temos discutido esse assunto.

Já por um olhar mais intimista, notamos a deficiência com que as pessoas tratam de si mesmas, de sua saúde, de seu corpo e de sua mente, levadas pelas ondas do progresso e por seu inebriante apelo ao consumo.

Números preocupantes

O século XX nos entregou os computadores, mas também nos forneceu a televisão e a comida processada. Sinal do progresso, essa tríade colocou o homem num conforto nunca antes visto: durante o dia ele se esconde por trás do monitor e tecla agilmente sem parar; à noite ele se esparrama pelo sofá, hipnotizado pela televisão, que mal sente o sabor da comida processada que engole vorazmente. Resultado dos novos tempos: uma verdadeira epidemia de obesidade. De acordo com o Ministério da Saúde, um em cada cinco brasileiros está obeso. A prevalência da obesidade no país aumentou cerca de 60% na última década, passando de 11,8% para 18,9% em 2016. O sobrepeso também aumentou chegando a alarmantes 53,8% no mesmo período.

As crianças encenam um capítulo à parte: se antes elas viviam escalando as árvores, esfolando os pés e joelhos no chão de terra, tomando sucos naturais e comendo arroz, feijão, salada e bife, hoje elas passam grande parte do dia resguardadas em seus apartamentos ou casas, vendo televisão ou navegando pela Internet, comendo biscoitos e tomando refrigerantes. Vivem como verdadeiros porcos em fase de engorda, na dependência da lavagem fácil, que não lhes falta. E os pais? Boa parte deles está cega ao problema.

A consciência do consumo

Um estudo feito em Vitória – ES – com 1.282 crianças de 7 a 10 anos revelou que somente 10% das respectivas mães reconheceram que os filhos com sobrepeso ou obesidade estavam realmente pesando acima do normal para a altura e a idade. Nessa mesma população de crianças, ficou evidenciado que 14% delas apresentavam pressão arterial acima do normal, fato preocupante, já que excesso de peso e hipertensão arterial são dois fatores de risco para doenças cardiovasculares, a principal causa de morte na população brasileira.

Levando-se em consideração quatro variáveis – excesso de peso, hipertensão, alimentação de baixa qualidade e quatro horas ou mais de lazer sedentário diário – os pesquisadores capixabas verificaram que 88% das crianças apresentavam ao menos um dos fatores de risco para doenças cardiovasculares e apenas 12% não apresentavam nenhum fator.

Creditar a responsabilidade do sobrepeso infantil somente aos pais talvez não seja de todo justo, embora caiba a eles direcionar a educação dos filhos para uma vida de hábitos saudáveis.

Entretanto, a questão necessita de uma análise muito mais profunda do que uma simples mudança na educação dos filhos. Ela pede por uma mudança na cultura de toda a sociedade que hoje consome quase sem razões verdadeiras, na impassibilidade de um autômato rigorosamente dirigido por matizes comunicativas a serviço do progresso. Mas, que progresso é esse?

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação)