A história de Frankentein, por uma rápida e objetiva leitura, não deixa de ser uma severa crítica à ciência aceleradamente racional, muitas vezes exagerada e até petulante, que tenta superar a qualquer custo os limites da evolução da humanidade, nem sempre medindo as possíveis consequências. Criar monstros talvez não seja o problema, mas controlá-los sim.
Quando as primeiras pesquisas com vegetais transgênicos começaram a vir a público, muitas vozes se levantaram contra, no que se poderia denominar, na ocasião, de o monstro da transgênese. Diziam que na obscuridade da ignorância seria melhor ser reticente a aceitar novas divindades.
Pois bem, o tempo passou, mas o assunto continua ecoando aos nossos sentidos. Vez ou outra quando vamos ao supermercado e nos deparamos com um produto livre de transgênicos, somos mais factíveis a comprá-lo e consumi-lo do que um produto transgênico. A propaganda fez o seu papel e treinou muito bem nosso cérebro.
O cenário animal
Só para lembrar, uma coisa “transgênica” é aquela que possui o seu genoma modificado artificialmente pelo homem. A coisa que conhecíamos até então, eram os vegetais. Mas, como a ciência nunca dorme no ponto, eis que surgem as pesquisas com animais transgênicos. Isso mesmo, e não é tão novidade assim, na verdade as pesquisas já têm mais de meio século de vida, embora sempre realizadas de forma bem velada.
Provavelmente, o prezado leitor deve se lembrar de uma fotografia publicada em revistas e jornais mundo afora mostrando um camundongo fosforescente que brilhava como um vaga-lume em noite de lua nova. Esse animal recebeu um gene da água-viva que codifica a proteína fosforescente GFP, e a partir de então passou a emitir um brilho verde que sacramentou o domínio da transgenia sobre os animais.
O sentido prático em escala
Com o avanço das técnicas controladas de manipulação genética, pesquisadores já têm criado diferentes espécies mutantes de camundongos, ratos, coelhos, porcos, ovelhas, cabras, galinhas, macacos e vacas, entre outros. Um ponto positivo dessas criações é a promoção do uso racional de animais de laboratório. Aliás, estatísticas evidenciam a diminuição desse uso, e em alguns casos, a substituição de espécies geneticamente mais próximas do homem, como os primatas, por animais menores geneticamente modificados.
A medicina talvez seja a área mais envolvida com esse tipo de pesquisa. É sabido, por exemplo, que determinadas doenças implicam em transplantes de órgãos, causando enormes filas de espera, das quais muitos pacientes saem mortos sem serem transplantados. Há evidente falta de órgãos.
O xenotransplante – transplante de órgãos e tecidos de animais em seres humanos – poderia ser uma boa solução para esse problema. Um dos obstáculos para a adoção desse processo é a superação do sistema imunológico humano que destrói as células que não possuem marcadores humanos específicos. Aí entra a engenharia genética: porcos transgênicos já estão sendo criados com células contendo esse marcador humano, o que evitaria o problema. Evidentemente muitas pesquisas ainda devem ser realizadas, mas a luz no final do túnel começa a aparecer.
A indústria farmacêutica também tem se utilizado da transgênese para desenvolver novas drogas. Utilizam um processo denominado “humanização de camundongos”, processo esse que substitui um gene do genoma do animal por um gene humano. As novas drogas, nesse caso, podem ser testadas com mais eficácia, maior rapidez e num preço menor.
Um outro exemplo é a criação de animais conhecidos como biorreatores. Eles são capazes de produzir proteínas recombinantes como enzimas, hormônios e fatores de crescimento de grande interesse biológico e comercial. Em 1997 surgiu a primeira vaca transgênica que produzia leite enriquecido, mais nutritivo que o leite natural e propício para a alimentação das crianças. Há notícias sobre outros leites transgênicos que ajudam no tratamento de doenças como a fenilcetonúria, enfisema hereditário e fibrose cística.
A notícia mais interessante surgiu em 2001, quando cientistas canadenses introduziram genes responsáveis pela produção de proteínas de teia de aranha nas células das glândulas mamárias de cabras lactentes. Essas cabras começaram a produzir seda no leite, que manufaturada tornou-se um material leve, flexível e resistente que poderia ser utilizado largamente no setor de confecções.
Resumo da ópera
Se a transgênese animal pode ser vista como a futura pedra filosofal da medicina, por outro lado a ciência deve rapidamente normatizar o seu uso. Coibir irracionalidades e propiciar o uso ético da ciência e da tecnologia é uma boa receita para manter segura e perene a evolução da sociedade.
E lembremo-nos, para a maioria dos problemas da humanidade não existe uma única e definidora bala de prata. A conjugação de um ou mais processos sempre deve ser levada em consideração.
Caso o leitor tenha interesse no tema, vale a pena passar os olhos neste site https://www.peritoanimal.com.br/animais-transgenicos-definicao-exemplos-e-caracteristicas-23406.html.
(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação)
Publicado na edição 10.754, quarta, quinta e sexta-feira, 10, 11 e 12 de maio de 2023