Fato comum na Europa, o Brasil começa a vivenciar episódios de repúdio à utilização de animais em laboratório. O Instituto Royal, situado em São Roque, próximo a São Paulo, que o diga: depois de sofrer a segunda invasão em menos de um mês por “ativistas” pelos direitos dos animais, resolveu fechar as portas e interromper as pesquisas, alegando falta de segurança.
Sem fazer juízo de causa sobre esses episódios específicos, o fato é que a ciência relacionada à saúde não teria evoluído tanto nos dois últimos séculos se não fosse a providencial ajuda dos animais, involuntária é claro. Maria Júlia Manso Alves e Walter Colli, ambos pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, publicaram artigo há alguns anos que mostrava números sobre a utilização de animais no mundo: 15 milhões nos Estados Unidos, 11 milhões na Europa, 5 milhões no Japão, 2 milhões no Canadá e menos de 1 milhão na Austrália. Os números brasileiros não eram conhecidos oficialmente na época, mas sabia-se serem insignificantes perante os números internacionais, a despeito da extensa fauna encontrada em território nacional.
O artigo dava conta também de alguns percentuais: do total de animais experimentais, 80% eram roedores, como ratos e camundongos, 10% eram peixes, anfíbios, répteis e pássaros, e o restante se dividia em coelhos, cabras, bois, porcos, cachorros, gatos e macacos.
O objetivo principal da utilização de animais é substituir o ser humano como objeto de experimentos na preparação e controle da qualidade de medicamentos e no ensino.
O difícil dilema e a ética
No mundo existe um grande dilema sobre a utilização de animais em experimentos científicos. Esse dilema remonta o século 18, quando o filósofo Jeremy Bentham (1748 – 1832) proferiu uma frase marcante que dizia “A questão não é se os animais podem raciocinar ou falar, mas se podem sofrer”. A preocupação com o sofrimento dos animais logo extrapolou a esfera científica para estimular o seio da sociedade, pouco informada, a combater e impedir a qualquer custo, o uso dos animais pela ciência. Dos males o menor. De todo esse falatório tratou-se de criar leis e princípios básicos internacionais que contemplam o uso ético dos animais em laboratório. Citamos alguns itens desses princípios: os animais devem ser substituídos por modelos alternativos sempre que possível; todos os experimentos que envolvem animais devem ser relevantes; deve-se utilizar o mínimo de animais necessários; e, os animais devem receber conforto adequado e alívio (anestesia) em procedimentos que causam dor.
É óbvio que leis e regras por si só não têm valor algum se os cientistas não utilizarem um princípio básico de civilidade que é a ética. Mesmo na ciência isso nem sempre acontece. A ganância por prêmios, verbas e reconhecimento leva muitos pesquisadores por caminhos tortuosos, os quais não só maculam o nome da ciência como colocam a opinião pública em pé-de-guerra contra as pesquisas experimentais.
Um mal necessário
Sem os animais como cobaias talvez não tivéssemos ao nosso dispor medicamentos como anestésicos, antibióticos, anticoagulantes, insulina e drogas para controlar a pressão sanguínea ou a rejeição em transplantes. Provavelmente não seria possível testar vacinas para difteria, poliomielite, meningite bacteriana, entre outras. Certamente procedimentos como transplantes, transfusão de sangue, diálise renal e substituição de válvulas cardíacas seriam inviáveis.
O Instituto Butantã é responsável pela produção de cerca de 80% do total de soros e vacinas consumidas no Brasil, incluindo os soros antipeçonhentos, antivirais, antitetânico e antibotulítico, além das vacinas tríplice infantil e contra a hepatite B, raiva e gripe. Só em 2005 foram 100 milhões de doses de vacinas e mais de 500 mil ampolas de soros produzidas. Para quem não sabe, o Instituto Butantã só consegue esse feito (um orgulho para a ciência aplicada brasileira) por conta dos animais utilizados como cobaias. Vejamos um exemplo: a cobra gera o veneno; o cavalo recebe doses diluídas do veneno e produz anticorpos, base do soro; e o camundongo serve de alimento para a cobra. Sem eles seria impossível obter o soro antiofídico.
Hoje a tecnologia não consegue substituir os animais, embora existam iniciativas com esse intuito, como a produção de insulina através da utilização de micro-organismos geneticamente modificados. Mas, ainda é um processo recente que não garante a segurança necessária para a utilização em massa. Por ora dependemos invariavelmente dos animais, mas principalmente da conduta ética dos cientistas.
(Colaboração de Wagner Zaparoli, natural de Bebedouro, doutor em Ciências pela USP, mestre em Ciência da Computação, professor de lógica e consultor. E-mail: [email protected]).
Publicado na edição nº 9628, dos dias 28 e 29 de novembro de 2013.