O uso de dados é uma realidade social que muitas vezes tem reforçado marginalizações e exclusões. Nesse contexto, as organizações devem cogitar ir além dos requisitos mínimos de segurança; elas devem fundamentalmente proporcionar aos titulares informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre o tratamento de dados pessoais. A ONU (Organização das Nações Unidas) emitiu relatório sobre direito à privacidade, colocando em pauta os desafios e analisando três áreas principais: o abuso de ferramentas intrusivas de hackers (“spyware”) por autoridades estatais; o papel fundamental de métodos robustos de criptografia na proteção dos direitos humanos on-line; e os impactos do monitoramento digital generalizado de espaços públicos.
A gama de serviços oferecidos pelas plataformas digitais tem aumentado à medida que novas soluções surgem para facilitar o dia a dia. Os dados pessoais são coletados em cada oportunidade que os fornecemos para cadastros em lojas, sites, aplicativos etc. A grande problemática é a aglutinação desses diversos cadastros para formação de um perfil pessoal e a sua utilização para oferecimento de bens, serviços e publicidade, fugindo da expectativa do titular. A título comparativo, pesquisa desenvolvida pelo site Visual Capitalist revelou que, para companhias aéreas, automóveis e telefone, levaram-se mais de 50 anos para atingirem 50 milhões de usuários, ao passo que o aplicativo Pokémon Go, levou apenas 19 dias, ou seja, mais de dois milhões e seiscentos mil usuários por dia.
Recentemente, um episódio da série “Black Mirror” viralizou nas redes sociais ao retratar que toda a intimidade da protagonista era exposta pela plataforma de streaming, como se fosse uma novela, considerando a capacidade de coleta massiva de dados pelos diversos dispositivos utilizados. A atuação das autoridades de privacidade de todo o mundo demonstra que essa ficção não está muito longe da nossa realidade. No Brasil, a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) tem se dedicado a analisar a forma como os dados pessoais são coletados pelas redes sociais, a exemplo da recomendação sobre Política de Privacidade do Whatsapp, Meta e, agora, recentemente, da nova rede social Threads.
Pois bem, em todas as plataformas existe o documento chamado de aviso de privacidade, ou política de privacidade, que contém as informações sobre como as organizações tratam os dados pessoais de seus usuários, com a finalidade de dar transparência aos titulares, principalmente, os tipos de dados que são coletados, a finalidade do tratamento, informações sobre a existência de compartilhamento dos dados e a sua justificativa e a forma como o titular pode exercer seus direitos. A exemplo da finalidade da bula nos medicamentos, onde informa as formas de uso, dosagem e possíveis efeitos colaterais.
Geralmente, as pessoas não leem estes avisos de privacidade e acabam por passar um cheque em branco para que esses sites coletem, usem e compartilhem seus dados. Um dos fatores determinantes é a forma como estes documentos de privacidade são escritos. As políticas de privacidade são estruturadas com uma linguagem complexa e técnica, que muitas vezes não está adaptada para leitura no ambiente digital, seja computador, tablet ou smartphone, e não dialogam com seu público-alvo. Pesquisa realizada pelo jornal The New York Times apontou que em 150 avisos de privacidade analisados foi identificado alto grau de dificuldade de compreensão dos seus termos, considerando os conhecimentos de pessoas com formação completa.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) estabelece o direito de cada indivíduo controlar o fluxo dos seus dados pessoais, a utilização de linguagem simples e a potencialização da transparência em relação ao tratamento de dados pessoais. O desafio é transformar informações de privacidade em conteúdo acessível, melhorar a comunicação de informações legais complexas e a experiência do usuário do sistema. A informação deve ser feita de forma clara e concisa, evitando-se textos longos e repletos de linguagem técnica, que apenas especialistas conseguem compreender. A proteção de dados pessoais ganha maior relevância à medida que a tecnologia tem se tornado cada vez mais presente na sociedade. Deve-se fomentar o debate a respeito da proteção de dados pessoais, a partir de um viés jurídico e econômico, buscando falar a respeito das funções que a tecnologia deve assumir dentro da sociedade, sem que se exerça controle sobre ela.
Em um mundo cada vez mais digital e tecnológico, não se pode renunciar à proteção de dados, principalmente para conscientização e educação da sociedade para esta era. São inegáveis os benefícios da tecnologia e da inovação, contudo, estes trouxeram novos desafios. É necessário que o Direito acompanhe estas mudanças e ofereça soluções eficazes, possibilitando a utilização ética e transparente dos dados, indispensável para construção de uma relação de confiança.
(Colaboração de Rodrigo Toler, advogado de Privacidade e Proteção de Dados no Opice Blum, Bruno Advogados, Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP. Possui certificação DPO/EXIN e CIPM/IAPP. Membro do IASP, atuando na comissão de implementação da LGPD e Pesquisador Voluntário do Cedis Privacy Lab. Graduado em Direito com especialização em Processo Civil, Direito Digital e Proteção de Dados).
Publicado na edição 10.777, quarta, quinta e sexta-feira, 2, 3 e 4 de agosto de 2023