Brasil: vitória contra a Covid, derrota contra a corrupção

Samuel Hanan

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Imagine a hipótese de um governador de estado, detentor de foro privilegiado, investigado pela Polícia Federal por suspeita de uso indevido de recursos federais, ser indiciado, denunciado pela Procuradoria Geral da República, e, ter a denúncia recebida por decisão de mais de oito ministros do Superior Tribunal de Justiça, tornando-se réu por crimes como fraude em licitação, peculato, dispensa irregular de licitação e embaraço à investigação.

Imagine, agora, uma situação na qual, mesmo já sendo réu em processo-crime, esse governador não é afastado do cargo. Ele, então, decide se filiar a um novo partido e se apresentar como pré-candidato à reeleição. Admitindo-se que seu nome seja aprovado pela convenção partidária, esse governador terá sua campanha eleitoral financiada em parte pelo Fundo Eleitoral, aprovado no Orçamento da União e originado de recursos do contribuinte. E, em tese, terá garantida certa vantagem no pleito, não apenas porque seu partido – por critério de tamanho da bancada no Congresso Nacional – terá à disposição uma fatia desse fundo, mas também porque ele, na condição de candidato, irá dispor de generoso tempo no Horário Eleitoral Gratuito de rádio e televisão, igualmente custeado pelo contribuinte, e poderá fazer sua campanha sem a necessidade de se afastar do cargo para concorrer a um novo mandato.

Por mais incoerente que possa parecer, esse governante, respondendo a processo-crime por desvio de recursos públicos, irá receber novos recursos públicos para gastar em sua campanha destinada à conquista de mais um mandato. Tudo dentro da lei.

Nessa hipótese, faltando no máximo oito meses para as eleições, dificilmente seu processo será julgado até essa data. Se vencer a eleição e vier a ser condenado e posteriormente afastado do cargo – improvável em razão do grande número de recursos previstos na legislação processual e diante da proibição da prisão mesmo após condenação em segunda instância, já definida pelo STF -, assumirá o vice-governador. E é sabida a pouca importância que o eleitor brasileiro dispensa à figura do vice na hora do voto, sequer se lembrando do seu nome, passados poucos meses da eleição. Cultura que, em nome da boa democracia, precisa ser mudada em um país no qual três vices assumiram em definitivo a Presidência da República após a redemocratização: José Sarney, com a morte de Tancredo Neves, e Itamar Franco e Michel Temer, com os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, respectivamente.

Esse quadro se desenha dentro da legalidade, porém contraria a ética, a moralidade e o bom senso. É impossível ao cidadão comum aceitar que um acusado por desvio de recursos públicos – após investigação da Polícia Federal e do Ministério Público que viram indícios suficientes para instauração de inquérito e oferecimento da denúncia – tenha à sua disposição ainda mais recursos do erário, ou seja, dinheiro do contribuinte, para gastar com livre discricionariedade.

Eis um dos males que afetam o Brasil: a falta de legislação mais rígida e mais célere para o julgamento de agentes públicos, necessária porque eles foram investidos da confiança do cidadão para ocupar seus cargos eletivos. Lamentavelmente, o arcabouço jurídico atual permite situações como aquela tratada aqui hipoteticamente. Admite também que um governador, há anos condenado pelo STJ, permaneça no cargo enquanto seus recursos dormitam à espera de julgamento no STF. Essa disputa jurídica nas instâncias superiores, apoia-se muitas vezes em chicanas processuais para retardar o processo e levar o caso à prescrição, tornando inútil todo o trabalho dos investigadores e as provas colhidas, e, por fim, garantindo a impunidade.

Se o sistema judiciário dispõe de legítimos mecanismos de garantia do contraditório e da ampla defesa, a fim de se evitar a condenação injusta de inocentes, por outro lado é preciso que o Brasil crie instrumentos legais de resposta mais ágil e efetiva para a proteção da população e do erário contra gestores públicos envolvidos com atos de imoralidade administrativa, sem que isso represente qualquer ameaça ao princípio constitucional de presunção da inocência.

Essa leniência com que o Brasil trata os atos de corrupção corrói a democracia, desacredita as instituições, alimenta a sensação de impunidade e drena os cofres públicos.

Nosso país está conseguindo vencer a pandemia da Covid-19, porém segue despreparado para vencer a corrupção, que também mata, em proporção gigantesca e muito maior que a pandemia, ao provocar a falta de atendimento médico, de comida na mesa, de merenda escolar, de saneamento básico, de muito mais. A vacina mostrou-se eficaz para salvar vidas na pandemia. Falta ao Brasil criar uma vacina capaz de produzir anticorpos contra o mal da corrupção, para salvar a democracia e os ideais republicanos. E ela pode ser tríplice, com cepas da drástica redução do foro privilegiado, da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, e da imprescritibilidade dos crimes de corrupção.

O Brasil, num grande pacto envolvendo Executivo, Legislativo, Judiciário e a sociedade civil, precisa, urgentemente, trabalhar por reformas que moralizem a administração pública e deem uma resposta firme e efetiva para quem pensa que pode administrar uma cidade, um estado ou o país como um balcão de negócios. Em uma nação de tamanhas carências, não há mais espaço para a imoralidade. O eleitor mais incauto pode se deixar enganar, iludido por falsas promessas e campanhas milionárias, mas o voto não legitima a improbidade.

(Colaboração de Samuel Hanan, engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). É autor do livro “Brasil, um país à deriva”).

Publicado na edição 10.665, quarta, quinta e sexta, dias 11, 12 e 13 de maio de 2022.