Cicatrizes abertas

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Às 8h 15min da manhã de 06 de agosto de 1945 um clarão radioativo varria a cidade de Hiroshima, matando 140 mil pessoas e deixando outros milhares em condições físicas atrozes. Três dias depois outro clarão iluminava a cidade de Nagasaki ceifando cerca de 135 mil vidas. Somando-se o número imediato de mortos às ocorrências das décadas seguintes, calcula-se que o maior ataque atômico impetrado pelos EUA gerou 300 mil mortes, número ainda em transformação.
A vida dos japoneses pós-ataques foi permeada de sofrimento, tristeza e preocupações. O impacto monstruoso das bombas sobrepujou a circunscrição do físico para flertar com o psicológico das pessoas, aflorando sentimentos ambíguos dentro da própria sociedade japonesa.
Foi sob o prisma da indignação que Masuji Ibuse, escritor japonês nascido em Fukuyama em 1898, sedimentou uma das maiores obras primas da literatura japonesa chamada Chuva Negra, publicada originalmente em 1965 que conta a história do cotidiano de uma família japonesa cercada pelos fantasmas da bomba. Shigematsu Shizuma e sua mulher Shigeko, ambos apresentando os sintomas da exposição à radiação da explosão, tentam arranjar um casamento para sua sobrinha de criação chamada Yasuko. Entretanto, um boato de que ela também apresentara os sintomas da contaminação acaba por afastar os pretendentes, o que a põe à beira da tristeza.
Ibuse, embora tenha escrito uma novela em tom ficcional, na verdade retratou um cenário vívido de preconceito que se disseminou rapidamente por toda a sociedade japonesa, como os átomos de urânio e plutônio que varreram Hiroshima e Nagasaki devorando os corpos a eles expostos. As jovens japonesas em idade de relacionamento sofreram em dobro: além das marcas físicas advindas de queimaduras e quedas de cabelos, eram rejeitadas como possíveis candidatas ao casamento.

Revivendo a história
Mais de meio século depois, o Japão parece estar revivendo os horrores de Hiroshima e Nagasaki. O acidente nuclear de Fukushima há dois anos tem revelado que as cicatrizes pós-guerra ainda estão bem abertas, bastando um leve raspão despretensioso para observar a ferida inflamar.

Além dos 19 mil mortos, resultado direto do tsunami, milhares de famílias desabrigadas que já deveriam ter recebido suas moradias fornecidas pelo governo, amargam uma vida difícil em albergues espalhados pela província. E já sabem que vão permanecer nesta vida incerta por pelo menos mais dois anos.
Entretanto, o grande fantasma da rejeição que atormentou o povo japonês durante o pós-guerra, volta, indelevelmente, a assombrar. Planos de casamento têm frequentemente sido cancelados quando se descobre que as noivas são provenientes da região. Imóveis já não são mais alugados para quem esteve perto do acidente, principalmente para os trabalhadores da usina nuclear de Fukushima. E, somando-se a isso, perpetua-se a grave situação econômica que atinge o Japão.
O fato é que o grande império do sol que um dia reinou quase absoluto pelas terras do oriente tem sofrido revezes tão profundos, cujas marcas talvez nem o tempo façam desaparecer.

(Colaboração de Wagner Zaparoli, natural de Bebedouro, doutor em Ciências pela USP, mestre em Ciência da Computação, professor de lógica e consultor. E-mail: [email protected]).

Publicado na edição n° 9530, dos dias 4 e 5 de abril de 2013.