Desde que o mundo é mundo, a política é feita de encontros, desencontros, momentos de força e períodos de fraqueza. Tudo muito natural em uma democracia, ao menos em tese. Há os que têm boa intenção, há os que enxergam na Administração Pública uma oportunidade de prosperar, isso no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Somos humanos, o que significa que somos sonhadores e, às vezes, fraquejamos. O que destoa na política, contudo, é a intenção de desinformar ou, ao menos, maquiar a verdade.
O orçamento da União para 2024 foi recentemente entregue ao Congresso Nacional, cumprindo o prazo de encaminhá-lo ao Parlamento até 31 de agosto de cada exercício. Neste documento, o governo federal estima dispêndios para o ano de 2024 e estabelece algumas premissas e diretrizes para o gasto da Administração Pública federal para o próximo exercício. Tal orçamento deve ser aprovado pelo Congresso Nacional, a fim de que haja chancela do povo brasileiro, representado pela Câmara dos Deputados, e dos entes federados, presentes na discussão através do Senado Federal. Tudo muito republicano, democrático e respeitoso à federação.
Ocorre que há um bode na sala após a apresentação do referido orçamento, mais especificamente no que cabe em relação à estimativa de que o déficit fiscal será zerado até o final de 2024. Inobstante ser uma meta arrojada, ambiciosa e de difícil cumprimento, a forma como tal objetivo deverá ser alcançado é que chama a atenção: através de uma arrecadação adicional de R$ 168 bilhões advinda do, claro, aumento da carga tributária. Que o orçamento buscaria um incremento pela via do aumento das receitas, isso já estava claro pelo perfil do governo atual e das políticas até então propostas e implementadas; mesmo assim, a meta adicional de arrecadação chama a atenção pelas cifras e, principalmente, pela forma como se pretende “chegar lá”. Cortes de despesas, o que seria o mais correto a se fazer para penalizar menos o contribuinte brasileiro, não foi por ora aventado.
Parcela significativa desse portentoso valor viria de vitórias do Fisco federal em discussões tributárias existentes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O Carf é o órgão que julga em segunda instância administrativa os recursos apresentados pelos contribuintes contra autuações da Receita Federal envolvendo tributos de competência da União, tais como Imposto sobre a Renda, PIS, Cofins e contribuições previdenciárias, dentre outros. Em tese, o Carf é uma instância de julgamento paritária, em que representantes do Fisco federal e dos contribuintes discutem as autuações e recursos apresentados e, em pé de igualdade, decidem sobre a questão.
Desde meados de 2020, os julgamentos que terminavam empatados – o que é comum no Carf – eram automaticamente decididos em favor dos contribuintes, mas esse cenário mudou com a recriação do “voto de qualidade”, que estabelece que julgamentos empatados agora sejam decididos em favor do Fisco. Com esse cenário, o governo federal, baseado no que foi exposto no orçamento entregue ao Congresso Nacional, espera arrecadar R$ 98 bilhões em receitas adicionais aos cofres públicos e, dessa forma, ajudar a zerar o déficit. Mas essa meta, ao menos em relação às receitas decorrentes de vitórias em discussões sobre tributos, é crível? Tudo indica que não.
Os contribuintes, quando são vencidos no julgamento realizado no Carf, podem recorrer ao Poder Judiciário, o que não só abre possibilidade de que a decisão do conselho em questão seja revista como, também, prolonga a resolução definitiva da questão em, não raro, mais alguns anos. Acreditar que a mera implementação do “voto de qualidade” resultará, quase que automaticamente, em portentoso incremento da arrecadação (são R$ 98 bilhões, muito dinheiro), é uma esperança pouco condizente com a realidade. Mesmo que, em eventual derrota no Carf e consequente pagamento do tributo devido, haja alguns benefícios para o contribuinte, como redução de multa e juros e prazo estendido para quitação do débito, mesmo assim é bastante factível que a maioria dos contribuintes continuará optando por discutir a questão novamente no Poder Judiciário, sem imediato pagamento dos valores supostamente devidos.
Dessa forma, não é razoável acreditar, colocando isso no orçamento, um documento oficial e que serve de base para planejamento e estruturação de políticas públicas no país, que haverá um incremento tão grande nas receitas da União com mero suporte na volta do “voto de qualidade”. É uma premissa perigosa, pouco crível e que não confere previsibilidade e segurança ao orçamento apresentado. Assim, uma das formas de aumento das receitas, com apoio do Carf, sem combinar com os russos – os contribuintes –, gerou um grande mal-estar em quem leu a peça orçamentaria para 2024. Vejamos o que os parlamentares, que deverão aprovar ou rejeitar o orçamento apresentado, acharão disso tudo.
(Colaboração de José Mário Neves David é advogado e consultor. Contato: [email protected]).
Publicado na edição 10.788, sábado a terça-feira, 16 a 19 de setembro de 2023