Em debate concomitantemente no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da análise do Recurso Extraordinário 1.017.365, e no Senado Federal, por força do trâmite do Projeto de Lei 2.903/2023 (PL 2.903), o marco temporal é um dos assuntos mais polêmicos e relevantes hoje para a pauta econômica e social no Brasil.
Trata-se o marco temporal de critério objetivo para demarcação de terras indígenas no País. De acordo com referido critério, apenas as regiões ocupadas por povos originários na data da promulgação da Constituição Federal (CF) vigente – qual seja, 5 de outubro de 1988 – poderiam ser destinadas para demarcação de áreas indígenas.
A decisão faz referência ao artigo 231 da CF, que determina que os povos indígenas possuem direito sobre as terras que ocupam, não fazendo, contudo, alusão a uma data específica para essa ocupação. Os indígenas defendem que as terras de alguma forma ocupada ao longo dos anos, desde o descobrimento do Brasil, estariam englobadas no conceito de ocupação da CF e poderiam ser destinadas à demarcação legal; por sua vez, setores da sociedade, dentre os quais o ruralista, defendem que o critério temporal para o termo “ocupam” indicado no caput do artigo 231 da CF seja a data de promulgação da Lei Maior vigente.
Dado o impasse acerca do momento em que a ocupação da terra deva ser considerada para fins de cumprimento do direito constitucional de demarcação de terras indígenas, coube ao STF, quando provocado, analisar a questão. Em julgamento iniciado em 2021, cuja decisão servirá de baliza para os julgamentos sobre o tema nas instâncias inferiores do Poder Judiciário no Brasil, houve, até o momento, empate. O Ministro relator do processo, Edson Fachin, votou pela inconstitucionalidade da definição de um marco temporal com base na data de promulgação da CF vigente. Por outro lado, o Ministro Nunes Marques divergiu do relator e votou pela constitucionalidade da data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para demarcação de terras indígenas no País. O julgamento, empatado em 1 a 1, foi reiniciado na quarta-feira (7). Há a possibilidade de que algum outro Ministro peça vistas do processo e suspenda novamente o julgamento.
Em paralelo, o Poder Legislativo analisou, também, a questão. A Câmara dos Deputados aprovou recentemente, em regime de urgência, o Projeto de Lei 490/2007, e encaminhou a matéria para a Casa Revisora, no caso, o Senado Federal, em que o projeto aprovado foi numerado como PL 2.903 e que agora aguarda análise pelas Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). Caso aprovado nas mencionadas comissões, o texto segue para votação no Plenário do Senado Federal e, uma vez aprovado sem alterações relevantes, segue para sanção ou veto (total ou parcial) da Presidência da República. Um longo e tortuoso caminho político pela frente.
O interessante de toda a questão é que há, no momento, dois Poderes discutindo a mesma matéria – Poder Judiciário e Poder Legislativo. Caso haja convergência de entendimentos, tudo certo. Agora, caso o STF decida em uma direção e o Congresso Nacional decida em outra, haveria um conflito. Por certo, em um Estado Democrático de Direito como é o Brasil, a palavra do STF é a final sobre questões constitucionais, mas seria um duro golpe na democracia caso a decisão dos representantes do Povo não fosse considerada pelos Ministros do STF em suas análises. Uma briga contra o relógio para ambos os Poderes, com interesses e pressões diferentes de cada lado.
Nesse sentido, é fundamental para a estabilidade social do Brasil e para que todas as partes envolvidas obtenham segurança jurídica que a tese do marco temporal seja analisada e referendada, ou não, pelos Poderes constituídos. Haveria, assim, um fio condutor para a tomada de decisões sobre o tema no País. Por outro lado, é importante que se caminhe para a convergência de entendimentos sobre a questão entre os Poderes Judiciário e Legislativo, a fim de que confiram maior segurança aos brasileiros em relação à questão da demarcação de terras indígenas. A conferir os próximos andamentos dessa questão.
(Colaboração de José Mário Neves David, advogado e consultor. Contato: [email protected]).
Publicado na edição 10.761, quinta a terça-feira, 8 a 13 de junho de 2023 – Ano 99