Nada como o tempo

José Renato Nalini

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O tempo é um enigma. Há quem diga só existir o passado. O futuro é incerto. A longo prazo, não estaremos nele. O presente é fugaz. Mal se pronuncia uma palavra e ela “já mergulhou no infinito do abismo imóvel, não voltará nunca, nunca mais, só a memória pode guardá-la, e a própria memória é apenas meu recipiente próprio de sensações; pode ser que se perca junto comigo” (Leszek Kolakowski, Pequenas palavras sobre grandes temas). Uma das angústias contemporâneas é a sensação de que o movimento de rotação da Terra sofreu uma aceleração. Tudo é muito rápido, não se dispõe de tempo suficiente para atendimento das requisições, dos anseios, das boas intenções das quais consta que o inferno está repleto.
As avaliações feitas de imediato, quase que simultaneamente à situação aferida, resultam de impulsos. Julgar-se ex abrupto é temerário. As sensações nem sempre são guia seguro e veraz. As versões podem não ser fidedignas. É a emoção que transborda e está ausente a serenidade imprescindível a uma adequada análise.
Quando se revisitam episódios históricos, após a decantação com a qual os apressados não se conformam, apurar-se-á que a verdade é poliédrica, sempre invocável a metáfora dos cinco cegos a descrever o elefante que tateiam.
Tal reflexão me vem à mente quando se procura traçar preciso diagnóstico do governo Michel Temer. Sua presidência só poderá merecer apreciação confiável depois do decurso de tempo razoável. Quando esse período de exercício do poder na República Federativa do Brasil residir no passado, então se poderá traçar um desenho insuspeito do que tenha ocorrido. O passado é o tempo propício a conferir uma sensação de segurança. O que aconteceu já ocorreu. Nada mais é modificável. Existirá uma certeza despida de paixão. Portanto, uma certeza mais crível do que as impressões extraíveis dos coevos dos fatos.
O Michel Temer que conheci, foi o irmão mais novo do Fued, um advogado respeitado e muito querido no foro paulistano. Era considerado padrão ético. Michel foi o jovem e promissor docente da PUC de São Paulo, o autor do lido e relido “Elementos de Direito Constitucional”. Obra requisitada em concursos e de cabeceira para quem quisesse ingressar numa carreira pública. Foi ele o Procurador do Estado que imprimiu prestígio e dinamismo a tal segmento, durante muitos anos subordinado à Secretaria da Justiça e que, com ele e depois dele, foi alçado a idêntico nível.
A trajetória na política, o exercício da Secretaria da Segurança Pública, as sucessivas eleições e reeleições, a Presidência da Câmara dos Deputados, a Casa do Povo na Democracia Representativa, mostrou o seu talento para a negociação e para a obtenção de ajustes entre os antagonismos próprios ao Parlamento.
Todas essas conquistas o não tornaram arrogante, prepotente ou inacessível. Continuou a comparecer aos clássicos semanais almoços dos companheiros de direito e a frequentar as mesmas rodas, conservando os antigos amigos.
No âmbito familiar, a filha Luciana Temer, criatura encantadora, é uma explícita recomendação de seu pai. Michel Temer tem uma história, antes da vida política. E Max Weber sustenta que “há duas maneiras de fazer política. Ou se vive “para” a política ou se vive “da” política. Nessa oposição não há nada de exclusivo. Muito ao contrário, em geral se fazem uma e outra coisa ao mesmo tempo, tanto idealmente quanto na prática” (Ciência e Política, duas vocações). Há um acervo de contribuições em vários setores, extraíveis de sua caminhada existencial. No Direito, na Segurança Pública, na Política.
Considere-se que o Brasil é uma nação em que se move e atua, ininterruptamente, uma sociedade complexa e heterogênea. Constitui notável laboratório para pesquisas antropológicas, pois congrega nichos próprios à Idade Antiga, tem quistos pré-medievais, ainda se detectam sintomas medievais. Mas há também modernidade e pós-modernidade. Tudo a coexistir, às vezes no mesmo espaço físico. Se os tempos são turbulentos em vários espaços do planeta, aqui ele se agudiza diante das gritantes desigualdades.
As demandas são crescentes e infinitas. Os recursos estatais a cada dia menos suficientes a fazer face à vocação provedora de um Estado pródigo em direitos, módico em obrigações. Acrescente-se o fenômeno do incrível avanço das TICs – Tecnologias da Informação e da Comunicação, a propiciarem a instantaneidade online de todas as opiniões. Muita vez, tem-se a impressão de que o consenso único brasileiro é a falta absoluta de consenso.
Missão terrível a de se responsabilizar por todas as tarefas heroicas exigíveis a um chefe de Governo e de Estado, numa época de crise trágica, ética e moral de início, política durante todo o tempo, a desaguar em nefasta situação econômico-financeira.
‘Esse o ambiente em que Michel Temer se viu obrigado a exercer sua dúplice vocação – homem de ciência, a jurídica por excelência, e homem de política nas veias. Ora, “a política é um esforço tenaz e enérgico para atravessar grossas vigas de madeira; tal esforço exige, a um tempo, paixão e senso de proporções. É perfeitamente exato dizer – e toda a experiência histórica o confirma – que não se teria jamais atingido o possível, se não se houvesse tentado o impossível” (Max Weber, op.cit.). Nem sempre – ou quase nunca – se alcança o alvo que se mirou. Inviável satisfazer a multiplicidade de expectativas e os reclamos irados dos descontentes. Mas não é impossível constatar indícios consistentes de que ele se armou da potência d’alma essencial à superação do naufrágio de todas as esperanças.
O julgamento de seu governo será feito pelo futuro, sob a lupa sensata de quem não estava presente, mas que não desconhece as vicissitudes do exercício do poder por um intelectual. As fronteiras da ciência definem o verdadeiro do falso. As fronteiras da política têm de se haver com o bem e o mal. Esse campo minado, essa areia movediça, não autoriza vereditos definitivos. Dê-se tempo ao tempo.

(Colaboração de José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Uninove, autor de “Ética Geral e Profissional” e Presidente da Academia Paulista de Letras).

Publicado na edição de nº 10412, de 24, 25 e 26 de julho de 2019.