Desde 2015, o Poder Legislativo vem ganhando protagonismo na distribuição dos recursos orçamentários. Nesse ano, o Congresso inseriu na Constituição a obrigatoriedade de execução das emendas individuais, expediente a que todo parlamentar já tinha direito, mas cuja liberação era, até então, incerta e dependia de uma decisão política do Executivo.

Depois, em 2019, foi a vez das emendas de bancadas estaduais se tornarem impositivas. Além disso, dois outros tipos de emendas, essas não obrigatórias, ganharam evidência – e, sobretudo, musculatura – no período: as de relator e as de comissão.

Todo esse movimento fez aumentar bastante o volume de dinheiro público sob controle dos parlamentares, conferindo ao Legislativo um grande poder na ordenação de despesas federais. Em 2024, estima-se que deputados e senadores decidirão o destino de quase R$ 52 bilhões, nada menos que 23% de todo o gasto discricionário – o montante que resta após as despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários e os pisos constitucionais da saúde e da educação.

Como mostraram Hélio Tollini e Marcos Mendes, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em nenhuma das grandes democracias há um Parlamento com tamanho controle sobre o Orçamento. Segundo o texto, em 53% dos países da OCDE, os congressistas não podem nem emendar o Orçamento. Em países que admitem o instrumento, como Estados Unidos, Espanha e Itália, ele não ultrapassa 1% das despesas discricionárias.

Não bastassem as consequências políticas dessa excessiva concentração de recursos – com reflexos óbvios na governabilidade do país –, parte expressiva dessas transferências ainda vem ferindo princípios constitucionais como os da transparência, da publicidade e da eficiência.

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal tomou duas decisões importantes neste mês de agosto. Na primeira, determinou que o governo só execute gastos de emendas de comissão que tenham prévia e total rastreabilidade; na segunda, suspendeu os desembolsos das emendas impositivas até que sejam adotadas regras que garantam o acompanhamento da trajetória da verba, a prestação de contas e a observância de limites fiscais. A última decisão afeta principalmente as chamadas transferências especiais, uma modalidade de emenda individual popularmente conhecida como emenda Pix.

Grosso modo, nas emendas de comissão o problema se dá na origem – não é possível conhecer o padrinho da verba –, ao passo que nas transferências especiais, a questão é o destino – não se sabe como o recurso foi usado. Já que no primeiro caso a situação é basicamente idêntica ao do orçamento secreto, proibido pelo STF no fim de 2022, falemos um pouco do segundo.

Implementada em 2019 sob o pretexto de agilizar a execução de políticas públicas, as emendas Pix permitem que deputados e senadores destinem recursos a entes federados de forma direta, sem a necessidade de vinculação a projetos específicos ou a formalização de convênios. Essa moeda, contudo, tem uma outra face pouco republicana: falta de controle formal e de transparência sobre o destino das verbas. Nem o parlamentar precisa informar o que vai ser feito com o dinheiro nem o recebedor do recurso, em geral um prefeito, é obrigado a informar como o gastou. Isso, claro, abre brechas para eventuais desvios, como vem mostrando a imprensa e a Polícia Federal. Neste ano, os congressistas terão o poder de destinar R$ 8,2 bilhões por meio da modalidade Pix.

Mas mesmo quando essas verbas são aplicadas corretamente, pode haver problemas. O dinheiro dessas emendas acaba pulverizado nos redutos políticos dos parlamentares, o que dificulta a reunião de recursos para investimentos maiores, que resolvam problemas de infraestrutura, e leva a uma perda de eficiência do gasto público.

Na semana passada, após uma reunião com representantes dos três poderes, acordou-se que seriam editadas novas regras para aumentar a transparência e a rastreabilidade do dinheiro das emendas.

Independentemente do resultado de tais movimentações, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo vem, por iniciativa própria, buscando dar a sua contribuição. No ano passado, a instituição promoveu um esforço fiscalizatório com o intuito de verificar a correta aplicação dos recursos oriundos das emendas Pix que saem do orçamento da União e chegam aos cofres municipais. De janeiro de 2022 a agosto de 2023, 565 das 644 cidades paulistas receberam R$ 760 milhões dessa forma.

A diligência do TCESP buscou identificar os responsáveis pelo recebimento, controle e aplicação das verbas nos municípios jurisdicionados; verificar a contabilização das transferências recebidas e correspondentes despesas realizadas; examinar a movimentação financeira dos recursos em contas bancárias específicas e fiscalizar a finalidade e a destinação do dinheiro enviado por parlamentares, entre outras ações. Neste ano, o tribunal não só repetirá a empreitada como irá ampliá-la, para averiguar também os demais tipos de emendas.

É sem dúvida legítimo que o Legislativo defina o destino de parte do Orçamento federal. Deve fazê-lo, contudo, de maneira transparente e eficaz, atributos básicos do Estado Democrático de Direito.

(Colaboração de Dimas Ramalho, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo).

Publicado na edição 10.871, de sábado a terça-feira, 7 a 10 de setembro de 2024 – Ano 100