Plinião, Julião e Laurão, com muito carinho

0
463

Este artigo foi publicado originalmente em 2004.

Eu tenho, sempre que possível, destacado a vida e a obra de eminentes cientistas que fizeram história no Brasil e no mundo. Já descrevi em textos anteriores, as vidas de Charles Darwin, Pitágoras, Platão, Pavlov, Carl Sagan e César Lates, para citar apenas alguns. Grande parte deles criou teorias ou simples idéias que sobreviveram ao tempo e ainda hoje influenciam a evolução da humanidade. Hoje farei um parêntese nessa coluna. Vou falar a respeito de três eminentes mestres, os quais eu tive o prazer e a honra de conviver por alguns anos de minha vida.
Não são cientistas renomados internacionalmente, mas nem seria preciso, dada à grandiosidade e preciosidade da obra que os três perpetuaram na vida e nos corações de inúmeros adolescentes durante tanto tempo.
Não gostaria que essas palavras fossem entendidas como uma simples homenagem, pois jamais uma homenagem de uma coluna sobre ciência e tecnologia seria suficiente para agradecer tanto esforço, tempo e paciência despendidos por quem era feliz em fazer o que fazia. Talvez fosse melhor encarar essas palavras como uma breve recordação de um passado marcante, o qual nos deu a base para a vida.
A entrada triunfante – Normalmente o diário de classe chegava antes dele. Feliz daquele diário, primeiro por pertencer a um dos maiores professores de ciências que aquela instituição já teve. Segundo, por poder voar livremente pelo ar como um pássaro feliz durante alguns segundos, saindo da grande mão, calejada pela vida e pela guerra, indo cair suavemente na mesa do professor. Depois dessa entrada triunfante, entrava o mestre, simples e calmo no seu andar de passos largos, vestido elegantemente num paletó marrom escuro. O silêncio era absoluto. Nem mesmo os mosquitos ousavam fazer qualquer comentário acerca das acrobacias “diarianas”; quem diria, os alunos! O olhar maroto era inconfundível, assim como o pequeno bigode e o cabelo bem aparados.
Plínio Furtado, professor de ciências do Paraíso Cavalcante, costumava transmitir aos alunos não só os conhecimentos das ditas ciências, mas principalmente as lições da vida. Por diversas vezes, eu como ex-aluno, tive a oportunidade de escutar passagens sobre a revolução de 32, da qual ele tomou parte. Uma frase, de tantas ditas por ele, ficou-me guardada em memória: “espero nunca ter atingido alguém, mas era a guerra”. Que ele não tenha atingido os seus inimigos de guerra é um grande desejo, mas fato foi que ele atingiu e cativou a todos que o tiveram como professor. E essa conquista ele jamais perdeu.
A simplicidade dos gênios – Para escrever essa coluna eu costumo ler inúmeras biografias de grandes cientistas, muitos dos quais, vencedores de prêmios Nobel. Uma característica marcante que observo em todos, é a simplicidade com que se apresentam à vida. E é essa imagem, a da simplicidade, que recordo das aulas de física no Abílio Manoel. Eu sempre admirava a facilidade com que o Professor Júlio Bricese expunha o conteúdo seqüenciado e organizado da matéria sem ter qualquer apoio que não fosse a própria memória. Com um vasto e inconfundível bigode, ele costumava falar pausadamente aos alunos sobre as mais diversas teorias da física, da mecânica dos fluídos, aos estudos ópticos. Cada aula era uma história. Lembro-me uma passagem que envolvia a Lei de Coulomb (Charles Augustin de Coulomb – 1736-1806 – físico francês), cuja dicção do nome poderia ser controversa. O Professor Júlio, então, antecipou-se singelamente à controvérsia e disse: “eu vou eleger a sílaba ‘lo’ do Coulomb como tônica. Se não for, me perdoem” e em seguida realizou uma verdadeira palestra sobre a respectiva Lei. Quem iria se importar com a dicção de um nome de lei depois daquele show?
Às vezes alguns amigos e eu passávamos em frente à varanda de sua residência, quase em frente ao prédio da Gazeta, e lá estava ele sentado na cadeira de descanso. Então gritávamos – Seu Júuulio – no que recebíamos como resposta infalível, um “Ouuu” da mais pura simplicidade, da simplicidade de um gênio.
A máquina de fazer química – Nos momentos iniciais da primeira aula do Professor Lauro Kfouri, fiquei estupefato. Eram tantas palavras proferidas num pequeno espaço de tempo, que minha mente (normalmente vagarosa), ficou completamente paralisada, tentando, primeiro, entender aquele mundo novo, o mundo da química; segundo, organizar as idéias num contexto inteligível; e terceiro, acompanhar o ritmo alucinado que ele imprimia às aulas. Mas, independentemente do desconforto inicial, eu comecei a admirar a competência técnica e a energia com que transmitia o conteúdo da intrincada química, com suas fórmulas, moléculas e elementos. E apesar de naquela época a química não ter o destaque que hoje tem, haja vista os recentes avanços da biogenética, dos elementos transgênicos, da medicina molecular, para citar apenas alguns exemplos, suas aulas sempre despertavam interesse e curiosidade. Era de fato um mundo completamente desconhecido para a maior parte de nós alunos, e sorte grande a nossa ter tido um eminente mestre nos orientando pelos primórdios dessa ciência.
Finamente trajado, com os cabelos grisalhos sempre penteados para trás, tenho comigo a imagem do Professor Lauro como uma fonte perene e salutar de energia, a qual adorava distribuir aos seus alunos.
O legado – Se hoje escrevo uma coluna sobre ciência e tecnologia, o faço muito por cumplicidade. Cumplicidade das idéias lançadas pelos grandes mestres que passaram por minha vida. Se hoje sou professor, o sou por ter recebido um legado de profissionalismo ao divino trabalho de disseminar o conhecimento entre aqueles que não o possuem.
E em nome dessas três personalidades, Plinião, Julião e Laurão, faço os meus agradecimentos a todos os meus ex-professores, que um dia decidiram que o melhor caminho para o desenvolvimento de um povo, é a educação.

Publicado na edição n°9634, dos dias 12 e 13 de dezembro de 2013.