Rebelião social

José Mário Neves David

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Acontecimentos recentes na Europa, mais especificamente na França, chamaram a atenção para importantes questões da vida em sociedade. Após a polícia local abrir fogo e matar um jovem de origem árabe que se recusou a parar o carro em blitz policial, milhares de manifestantes foram às ruas em variadas cidades e regiões francesas para protestar contra a violência policial. Parcela significativa dos protestos saiu do controle e muitos crimes, dentre os quais furtos e depredações, foram registrados em todo o país. Nos últimos dias, centenas de prisões foram realizadas e os protestos e o caos foram, aos poucos, sendo reduzidos na França. De tudo isso, o que se pode extrair?
Para essa análise, é preciso que algumas premissas sejam pontuadas. Primeiramente, fica claro que a abordagem policial falhou ao tentar deter um motorista inexperiente que se recusou a parar mediante ordem policial. Claro, o motorista errou ao não parar, seja por querer fugir da polícia, por medo da abordagem ou por pura inexperiência de como agir em uma situação de tensão, já que tinha apenas 17 anos. O erro do jovem, contudo, não justifica seu assassinato, já que não existem evidências de que ele teria reagido de forma a colocar a vida dos policiais e/ou da sociedade em risco naquele momento. Lógico, tratava-se de uma situação de tensão e, dado o histórico de atentados no hemisfério norte, a ação dos policiais pode ter sido motivada também por medo ou despreparo, mas denota-se que houve excesso por parte das autoridades.
Em segundo lugar, mas não menos importante, a perda da vida de um jovem de origem árabe – portanto, um imigrante ou descendente de imigrantes morando em um país de histórico colonialista – reacende um pavio social curto que envolve, do lado dos imigrantes, preconceito, pobreza e vida à margem da sociedade local, e do lado do francês tradicional, descontentamento com uma horda de pessoas “invadindo” seu país, alterando a rotina social e, para alguns, representando um risco ao pleno emprego e à renda. Trata-se de uma sintonia social muito delicada, com argumentos e motivos em ambos os lados da mesma moeda que, em tese, justificam um estado de descontentamento contínuo com os rumos da vida e da nação. Nesse ambiente, uma pequena fagulha detona o paiol e abre espaço para violência e intolerância.
Ademais, não se pode ignorar que a geopolítica mundial está tensa. Dados os últimos acontecimentos na Rússia, em um ambiente de instabilidade e desconfiança entre Ocidente e os países que buscam liderar a nova ordem mundial, é de se considerar que, talvez, os ventos que sopram na França podem ter origem em outros países e em interesses longínquos, no intuito de mudar o foco da atenção mundial ou simplesmente bagunçar o coreto em uma nação desenvolvida, com forte histórico colonialista e que compõe o Conselho de segurança da ONU, um órgão que envolve poder e interesses em grau elevado. Nesse contexto, o desequilíbrio social em um importante país europeu pode ser interessante para alguns.
A coordenação dos protestos, que descambaram facilmente para saques e depredações, e sua rápida disseminação por todas as regiões da França, indicam que os eventos sociais naquele país não devem ter ocorrido única e exclusivamente pelo legítimo descontentamento e, por que não, raiva em função da morte do jovem árabe. Pode ter ocorrido, inclusive, motivação política nos acontecimentos, já que sempre há espaço para polarizações e excessos em matéria de poder. A utilização das redes sociais, seja para organização, seja para divulgação, dos acontecimentos dos protestos também deixa claro o enorme desafio que os países democráticos têm pela frente no que cabe em relação ao controle de protestos e movimentos que excedem os limites da vida em sociedade, sem, contudo, adentrar no campo da censura e da limitação à liberdade de expressão. Um desafio e tanto.
Assim, a análise do cenário demanda racionalidade, equilíbrio e sensibilidade social, além de um aguçado radar para os interesses geopolíticos, militares e políticos ali envolvidos. Nesse momento, instituições democráticas fortes, compostas por pessoas cientes da responsabilidade e do dever que possuem, são fundamentais para reestabelecer a ordem, punir os culpados de forma adequada a razoável e manter acesa a chama da confiança na democracia, um sistema imperfeito, mas ainda melhor do que qualquer outro que tenha sido implementado na história. Acompanhemos os próximos capítulos.
(Colaboração de José Mário Neves David, advogado e consultor. Contato: [email protected]).
Publicado na edição 10.770, sábado a terça-feira, 8 a 11 de julho de 2023 – Ano 99