Se bater à sua porta, atenda!

Thiago Petreca

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Ela bateu à porta da tua casa. Aguardou um tanto impaciente. Quando a porta revelou o rosto de quem aguardava, um misto de sensações percorreu o teu corpo.

Um estranho sentimento de familiaridade e surpresa. Uma conhecida de longa data, mas cuja intimidade nunca havia sido revelada. Agora ela pede para entrar. Você hesita um tanto.

Deseja convidá-la para entrar enquanto se preocupa com o que ela fará com tuas coisas. “Será que vai me roubar o que mais gosto?” Você pensa. “Será que ela vai embora se eu a deixar entrar?” A dúvida a assalta.

Esta cena busca retratar, em parte, o encontro com nossa sombra. Parte de quem somos, aquilo que desgostamos e por muito tempo evitamos. Vive como um vizinho persistente em seu esforço para ser notado.

Faz barulho, toca a campainha, bate à porta, nos manda recados pelo muro do quintal. Mas olhamos para este vizinho como uma criatura incômoda, de quem queremos nos ver livres, até que percebemos que o local preferido de suas denúncias é o espelho.

Para aqueles que decidiram seguir a sabedoria de Delfos, retratada no templo de Apolo: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo,” a cena acima se torna uma realidade rapidamente.

Ao decidir empreender na aventura mais gloriosa que um ser humano pode ter, a compreensão da própria alma, ela, a sombra, lhe estenderá as mãos para que seja acolhida em teu meio, em tua casa, em tua intimidade.

Um momento realmente luminoso nesta aventura é quando se entende que ela já estava lá o tempo todo, mas era tratada como uma estranha, como um estrangeiro em sua própria terra.

Talvez, você leitor, leitora pense que esta aventura seja uma opção da qual podemos fugir. Eu diria que no máximo nos é possível atrasar tal encontro. Retardar tal jornada.

Como avestruzes, pode-se pensar que enfiar a cabeça na terra nos livrará desta visita inevitável. Isso é um engano. Não há criatura humana que possa evitar dar de cara consigo mesmo em algum momento. Dar de cara com suas mazelas, tristezas, dúvidas e angústias.

Sendo uma estrada da qual não podemos fugir, o ideal é encará-la de frente. Abrir a porta de nossa casa e convidá-la para um bom café. Ouvir o que ela tem a dizer e fazê-la sentir-se em casa.

Afinal, ela sempre esteve aí, mas, por muitos, foi ignorada até que um dia ela se rebelou e o tapete sob o qual você tentou escondê-la já não mais a comportava. Tornou-se uma montanha na tua sala de estar.

A beleza que se esconde no acolhimento de nossas sombras é a promessa do templo de Apolo: conhecer os deuses e o universo. O que de mais precioso poderia haver se não isso? A jornada é exigente e alguns recursos podem amenizar e facilitar esta empreitada. Um deles é a linguagem.

A Sombra, essencialmente, fala em linguagem simbólica. Para quem não está preparado, pode parecer uma conversa sem pé nem cabeça. Entretanto, se você se lançar em leituras poéticas, reflexões metafóricas, angariará os elementos que lhe permitirão traduzir muito do que esta grande professora tem a dizer.

Assim, seu diálogo tornar-se-á até mesmo aprazível e aquela figura que um dia bateu à tua porta, será lembrada como uma das visitas mais importantes que um dia você recebeu.

(Colaboração de Tiago Petreca, autor de Arya – O desnudar de uma dentre tantas almas, da DVS Editora).

Publicado na edição 10.863, de quarta, quinta e sexta-feira, 7, 8 e 9 de agosto de 2024 – Ano 100