A estadania sob o Governo Lula

Gaudêncio Torquato

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Julho se aproxima com o governo Lula correndo em ares de cruzeiro, visitando países, sendo este último, a França, viagem marcada para os próximos dias. Ares de cruzeiro, nesse caso, têm relação com o novo avião que Lula quer comprar, um equipamento mais potente e confortável que o atual aero-Lula, aliás, comprado por ele em idos tempos.

Correr o mundo, sim, para tirar o atraso perpetrado pelo genioso polêmico governo Bolsonaro, para quem parcela das democracias ocidentais virou as costas. Lula vai ficar devendo viagens pelo Brasil, o que ocorrerá na emergência de coisa nova a apresentar, pois, convenhamos, a administração tem pouco a exibir na vitrine de inovações. A verdade é que o governo Lula – e aqui não há nenhum julgamento de valor, apenas constatações – envelhece de modo precipitado, como se fosse canção batida em nossos ouvidos.

Essa é a sensação extraída de uma lupa que flagra os experimentos da administração federal, onde a tônica é a negociação política nos velhos padrões. Faz-se hoje o que se fizera ontem, ou antes de ontem. Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados, é o personagem que dá as cartas no baralho político. Com ele, à moda da linguagem nordestina, não tem “pirrepes”, é preto no branco. Ou vem cargo e verba ou pumba, nada feito.

A articulação política, feita aos moldes da velha política, além de reforçar a cara carcomida do governo, reforça a impressão de que Lula aprofunda as amarras que ligam o país ao atraso. Ou seja, Lula finca estacas nas cercas da cultura estatizante que caracteriza nossas tradições político-culturais. Lembro, a propósito, o acadêmico José Murilo de Carvalho, que nos apresenta o conceito de estadania.

Carvalho parte do coronelismo do ciclo agrícola que castigava o livre exercício dos direitos políticos. Os velhos coronéis da Primeira República (1889-1930) consideravam os eleitores como súditos, não como cidadãos. Criavam feudos dentro do Estado. A autoridade constituída esbarrava na porteira das fazendas.

A herança colonial imprimiu fortes marcas no painel da cidadania brasileira. O País herdou a grande propriedade rural, a escravidão (abolida em 1888, e que teima em se fazer presente) e, sobretudo, um Estado comprometido com o poder privado. Como se pode aduzir, “o coronelismo” era uma barreira ao desenvolvimento dos direitos civis.

O povo, como lembra o historiador em Cidadania no Brasil era avaliado “como incapaz de discernimento político, apático, incompetente, corrompível, enganável”, e não havia sentimento pátrio comum entre os habitantes.

A ideia de Pátria emerge, lentamente, a partir da Independência (1789), mesmo assim com certa ambiguidade, eis que os políticos da época usavam a expressão “minha pátria” para se referir aos Estados em comparação com o Brasil, apresentado como o “Império”. O advento da República (1822) aponta para o fortalecimento das províncias, eis que se implantou, no País, o federalismo ao modelo norte-americano, que deu impulso aos governos estaduais.

Mas o povo, seja no Império, seja na República, continuava a não ter lugar no sistema político, assistindo, distante, desconfiado, temeroso, os eventos cívicos. O ano de 1930 é um marco divisor, na medida em que nele se fixa a base dos direitos sociais, a partir de vasta legislação trabalhista e previdenciária.

Nesse ponto, convém assinalar interessante característica de nossa modelagem política. Carvalho observa que, entre nós, a cultura do Estado prevalece sobre a cultura da sociedade. Os direitos políticos apareceram antes dos direitos sociais, gerando uma sobrevalorização do Estado. Ou seja, houve uma inversão da lógica descrita por Thomas Marshall, em Cidadania, Classe Social e Status.

O sociólogo lembra que as nações democráticas, a partir de seu País, a Inglaterra, implantaram, primeiro, as liberdades civis, a seguir, os direitos políticos e, por último, os direitos sociais. Portanto, por aqui, o Poder Executivo, operando as ações públicas, eleva-se no conceito das pessoas por simbolizar o distribuidor de ‘benesses’. Direitos são vistos como concessões, e não como prerrogativas da sociedade, criando uma ‘estadania’ que sufoca a cidadania. Um processo de tutela amortece o ânimo social, dificultando sua emancipação política. Não por acaso, critica-se a força avassaladora do nosso presidencialismo de cunho imperial.

Não é à toa que o assistencialismo, como dádiva, corre nos desvãos das três esferas da administração pública. Para reforçar o poder de manipulação, os atores apropriam-se das conquistas das sociedades urbanas, entre elas, as linguagens das mídias, principalmente dos meios audiovisuais, e passam a exercer um controle social sobre as massas atraídas mais pela estética das imagens do que pela força da razão.

Ora, a rede assistencialista de Lula, a partir do Bolsa Família, cola o eleitor no mapa do Estado, não lhe dando alternativas para sair do sistema estatal.

Pois bem, para arrematar a marca de um governo que padece de envelhecimento precoce, o ministro da Justiça, Flávio Dino, comete a imperícia de comparar Cristiano Zanin, o advogado de Lula na Lava Jato, ao portentoso ministro Vitor Nunes Leal, autor de o clássico Coronelismo, Enxada e Voto. Zanin provou que é competente e o presidente Lula tem todo o direito de nomeá-lo para ocupar uma cadeira no STF. Mas fiquemos por aí no terreno das comparações.

Que Lula, em seu périplo internacional, medite sobre seus atos. Aprofundar a estadania será um retrocesso. O presidente pode até dar uma olhada no retrovisor. Mas sem querer conduzir o Brasil com o espelho mostrando apenas o passado.

(Colaboração de Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político).

Publicado na edição 10.764, sábado a terça-feira, 17 a 20 de junho de 2023 – Ano 99