A transmissão da cultura não é uma prerrogativa humana

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Considerado um dos melhores filmes de ficção científica de todos os tempos, “2001: Uma Odisséia no Espaço” conseguiu explorar com rara genialidade diversos assuntos que sempre despertaram a curiosidade humana, entre eles, a astronomia, a exploração espacial, a vida inteligente fora da Terra, a telecomunicação, a inteligência artificial e a robótica.

As percepções do novelista Arthur C. Clarke acerca da tecnologia futura (o filme foi produzido em 1969) foram excepcionais, embora em 2021 nós ainda não tenhamos obtido, por exemplo, a inteligência robótica de Hall, supercomputador que controlava a missão espacial a Júpiter. Mas, no filme o que me deixou realmente extasiado foram as suas cenas iniciais contidas no primeiro capítulo denominado “aurora”. Nele é mostrada a sequência de ações que levou os ancestrais do homem a aprender e utilizar ferramentas como extensão das próprias mãos e braços.

Da ficção para a realidade, sabemos que hoje seria muito difícil para a arqueologia prever com exatidão quando os primeiros hominídeos utilizaram uma ferramenta pela primeira vez. O certo é que poucas linhagens conseguiram e conseguem fazer isso como o homem e como uma linhagem muito próxima, a dos grandes macacos (chipanzés, gorilas e orangotangos). Todos, guardadas as devidas limitações, utilizam-se de ferramentas para obter o alimento da natureza. Alguns utilizam pedras para quebrar frutas duras como castanhas e coquinhos, outros gravetos para extrair mel dos favos de abelhas.

Os requisitos para as ferramentas

Embora para nós humanos não seja um problema a utilização de ferramentas em larga escala, no reino animal isso é uma raridade. O bioantropólogo holandês Carel van Schaik, da Universidade Duke nos Estados Unidos, define quais são os principais requisitos para uma espécie animal utilizar ferramentas na obtenção de alimentos: (1) o cérebro do animal precisa ser complexo o suficiente para que desenvolva esse comportamento; (2) deve haver uma dependência relativa do animal por alimentos de difícil acesso e que exigem algo além do aparato normal de garras e dentes; e, (3) é necessário que a sociedade na qual a espécie esteja estruturada seja tolerante o suficiente para permitir que um animal possa chegar perto de outro para observá-lo e aprender a técnica.

Até bem pouco tempo sabia-se que além do homem, somente os grandes macacos utilizavam as ferramentas, mas novos estudos e observações têm mostrado que o macaco-prego (Cebus apella) também utiliza ferramentas com o objetivo de obter alimentos.

Uma cultura especial

Eduardo Ottoni, especialista em comportamento animal, e seus colegas do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo têm trabalhado há anos na observação dos macacos-prego em sociedade. Primeiro observaram um grupo que vive em semiliberdade no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo. Depois foram ao Parque Nacional Serra da Capivara e ao município de Gilbués, ambos no Piauí. Em todas as localidades a equipe observou algo comum aos pregos: as sessões de quebra-nozes, ou seja, a utilização de pedras para quebrar a casca de coquinhos para a obtenção de sua polpa.

De fato a surpresa tomou conta da equipe, pois uma coisa é observar os chipanzés, que estão próximos de nós genealogicamente falando, utilizar ferramentas; outra é observar o macaco-prego, que divergiu de nossa linhagem há 40 milhões de anos, fazer isso.

A primeira idéia dos pesquisadores foi saber quais são os princípios gerais que levam à evolução desse comportamento. Depois de muitos estudos, observações e análises, Ottoni e equipe acreditam que o uso das ferramentas é transmitido culturalmente para as gerações posteriores. Outros indícios também têm levado a equipe a identificar traços do que se pode dizer tradição cultural dos prego, como o hábito dos filhotes de brincar de pega-pega com os filhotes de quatis.

Sem dúvida a descoberta de uma cultura, mesmo que rudimentar, dos macacos-prego ajuda os pesquisadores a refletir sobre a existência e a transmissão da cultura entre as gerações de animais. Quem imaginou que esse negócio de cultura restringia-se ao homem e aos seus chegados, deve começar a repensar a natureza.

E se o querido leitor tiver curiosidade sobre o tema, vale a pena dar uma passadinha no endereço https://revistapesquisa.fapesp.br/cultura-de-uso-de-ferramentas-por-macacos-prego-variou-ao-longo-de-3-mil-anos/.

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).

Publicado na edição 10.602, de 18 a 20 de agosto de 2021.