As guerras partidárias

Gaudêncio Torquato

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A destituição do presidente da Câmara dos EUA, o republicano Kevin McCarthy, em 3 de outubro, por meio de uma moção que teve 216 votos a favor e 210 contra, abre espaço para grandes interrogações. Como isso pode ocorrer no seio da maior democracia do mundo ocidental? Esta foi a segunda vez na História moderna da Casa em que tal votação foi realizada, algo que não acontecia há mais de um século no país, e a primeira em que seu presidente perde, de fato, o cargo.

Os últimos tempos vividos pelos EUA, entre os mais tensos de sua contemporaneidade, expressam simbolismos, não pelo fato de a democracia-símbolo do planeta descer degraus no ranking das potências, ante o crescimento da China, mas por proporcionar um aceso debate sobre a missão dos atores políticos nos sistemas democráticos.

Impressiona o fato de os Partidos Republicano e Democrata, deixando de lado o papel desempenhado pelo País na textura das nações, parecerem inclinados a continuar uma luta esganiçada pelo poder e a depositar na cesta do lixo a célebre lição de John Kennedy: “Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela América”.

Os dois contendores conseguiram, sob a liderança de McCarthy, aprovar uma medida bipartidária provisória de financiamento apoiada pela Casa Branca para evitar a paralisia do governo, o que desencadeou a fúria da ala ultraconservadora do partido, abrindo um buraco negro que ameaça engolir os sustentáculos da democracia americana.

O pano de fundo é a eleição presidencial no próximo ano, com Joe Biden, em vias de completar 82 anos, e Donald Trump, o protagonista conservador, ora liderando as pesquisas de intenção de voto. Os dois partidos engalfinham-se num conflito canibalesco, acirrando suas divergências partidárias e dando as costas ao bom senso.

É triste constatar que os dois grandes partidos já não acendem aquela chama de civismo que tanto maravilhou Alexis de Tocqueville, há 192 anos, quando o jovem advogado de 26 anos foi enviado pela França para estudar o sistema penitenciário estadunidense. Descrevia ele em sua clássica obra sobre a democracia americana: “Os grandes partidos são instrumentos que se ligam mais a princípios que a suas consequências, às generalidades que aos casos particulares, às ideias e não aos homens”.

A queda de braço entre as duas estruturas que se revezam no poder mostra que a balança dos pesos e contrapesos está precisando de reparos. O altruísmo, valor tão enaltecido pela democracia norte-americana, cede lugar ao pragmatismo; o fervor social esfria, basta ver a avaliação negativa que a população confere a seus presidentes, passada a euforia eleitoral.

Os EUA, infelizmente, borram sua imagem de liderança no painel das democracias planetárias. Quais as razões para tal mudança de paradigma? A principal aponta para a alteração da fisionomia política na sociedade pós-industrial. A política deixa de ser missão para se tornar profissão.

O motor econômico, por sua vez, passou a puxar a máquina política do mundo globalizado, como se pode conferir com os embates que se travam nos EUA e na Europa, a partir da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Escopos doutrinários tornam-se apêndices da economia.

Cabe indagar: como essa “nuvem de disfunção” (é assim que alguns analistas enxergam a crise norte-americana) afeta países como o Brasil? O fio desse rolo já chegou até nós há muito tempo. Nosso país abriga a prática da intransigência, do impasse político e da polarização entre as duas bandas que puxam o cabo de guerra: bolsonaristas e votantes em Lula.

Por aqui, a política não dá trégua aos competidores. A gana pelo poder é tão desmesurada que os climas eleitorais se intercambiam. A campanha municipal de 2024 já começa a agitar a mesa de debates. Em São Paulo, a guerra eleitoral começou com os questionamentos ao programa de privatizações do governo Tarcísio de Freitas.

No Brasil, é assim. A eleição seguinte abre as cortinas logo após a apuração dos resultados da anterior. Em todas as instâncias, programas e projetos, mesmo os mais abrangentes, comportam ações de cunho eleitoreiro. Políticas de longo prazo? No baú do esquecimento. E esse novo PAC não seria projeto do amanhã? Ora, está contaminado pelo olho nas urnas.

O megaempresário Jorge Gerdau, certa feita, fez o alerta: “numa visão estratégica de longo prazo, é preciso ter políticas de desenvolvimento industrial, ter emprego de qualidade e não depender apenas de commodities e do minério”.

A ausência de estratégia de longo prazo deriva da efervescência eleitoral que impregna o ânimo dos conjuntos. Como nos EUA, por aqui não se abre espaço para a busca de consenso entre blocos de um lado e de outro a respeito de temáticas relevantes. A disputa obedece a uma lógica que Thomas Hobbes cunhou de política de golpes preventivos: ‘A’ teme que ‘B’ ataque e decide atacar primeiro, mas ‘B’, temendo isso, quer se antecipar, fazendo que ‘A’, pressentindo o golpe, tente reagir, e assim por diante.

O ataque não abriga armas de destruição ideológica (até porque as ideologias estão no buraco), mas movimentos táticos. As clivagens partidárias do passado, originadas em antagonismos de classes, perdem sentido no fluxo da expansão econômica e do consequente ingresso de parcelas de parte das margens sociais no centro da pirâmide. As siglas se assemelham em seus lemas: o poder pelo poder.

(Colaboração de Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político).

Publicado na edição 10.796, quarta, quinta e sexta-feira, 18, 19 e 20 de outubro de 2023