Durante a Segunda Guerra Mundial o mundo presenciou um dos maiores genocídios ocorrido no século XX, no qual cerca de 6 milhões de judeus e outros tantos milhões de ciganos, poloneses, comunistas e deficientes, entre outros, foram exterminados. Esse assassinato em massa passou a ser conhecido como “holocausto”, principalmente depois do lançamento da minissérie americana em 1978 que tratava dos aspectos peculiares desse genocídio.
Aqui no Brasil o termo “holocausto” foi devidamente emprestado pela jornalista e escritora Daniela Arbex para contar a história de um evento extremamente doloroso que perdurou por décadas e foi pouco conhecido pela nossa população. De uma pesquisa extensa e trabalhosa, Daniela publicou em 2013 o livro chamado Holocausto Brasileiro que conta a história do maior hospital psiquiátrico do país situado na cidade de Barbacena, estado de Minas Gerais.
Um depósito de carne
O hospital Colônia foi fundado pelo governo de Minas Gerais em 1903 com o objetivo de tratar pessoas que sofriam de doenças mentais. Devido à escassez, na época, de locais adequados para tratamentos tão específicos, as boas intenções da criação daquele hospital em poucos anos foram sobrepujadas pela superlotação, pelo descaso e pela sua desumanização.
Trens chegavam de várias partes do país com dezenas de pessoas que não necessariamente possuíam sintomas de doença mental. Arbex dá conta que aqueles que fossem considerados indesejados socialmente – alcoólatras, prostitutas, negros, gays, epiléticos e até adolescentes grávidas, rejeitadas pelos pais – eram recebidos na instituição, tinham seu cabelo raspado e eram vestidos em um uniforme azul de brim. Terminava ali a história pessoal de cada um para começar o delírio coletivo do inferno na terra.
Dentre várias, uma história
Sueli Resende chegou ao Colônia em 1971 com menos de 10 anos de idade. Com crises epiléticas e abandonada pelos pais, iniciou-se numa jornada de sofrimento, violência e crueldade que terminaria somente 35 anos depois, com a sua morte.
A história de Sueli, como menciona Arbex em seu livro, “foi pintada com cores fortes”. Toda a violência que recebia de funcionários e pacientes, devolvia na mesma moeda. Mutilou muitos pacientes e se automutilou igualmente. Usava grampos para ferir os pulsos, enfiava cabos de vassoura na vagina e arrancava os próprios dentes. Em determinada ocasião em que passava fome – a despeito de registros de compras generosas de comida em nome do Colônia – ela matou uma pomba e a comeu na frente de todos dizendo que era seu único alimento.
Entretanto talvez o maior drama de Sueli durante os anos de internato tenha sido o roubo de sua filha logo aos 10 dias de vida. Era comum que os filhos de pacientes ali nascidos lhes fossem subtraídos e entregues para adoção. Sueli mal teve a oportunidade de ninar seu bebê, mas guardou consigo o amor pela criança que jamais viu em vida. Todo ano, no aniversário da menina, ela pedia aos responsáveis para vê-la, o que lhe era negado. Dizia que tinha dificuldades para dormir, que seu coração doía de saudades daquela a quem dera à luz. Em janeiro de 2006, Sueli não resistiu a um ataque cardíaco e morreu chamando pela filha.
Tragédia anunciada
Entre os anos de 1903 e 1980 mais de 60 mil pacientes morreram no Colônia. Boa parte deles foi enterrada como indigente no cemitério local, outra foi vendida para as faculdades de medicina do país e outra parte foi simplesmente dissolvida em ácido por já não haver mais espaço para enterrar os corpos.
O Colônia literalmente representou o lado obscuro da humanidade durante várias décadas sem que ninguém – sociedade civil, governos e entidades assistenciais – pudesse mudar o rumo das atrocidades. O cenário negativo somente foi amenizado com a introdução do protocolo humanizado para o tratamento psiquiátrico na década de 1980.
Embora desejemos esquecer esses fatos horríveis, é imprescindível entendermos que em um país como o Brasil, cuja marca registrada é a desigualdade social, não é difícil tropeçar em pequenos Colônias à nossa volta. E o que fazemos? Fechamos os olhos? Ignoramos como o ocorrido em Barbacena?
Se você se interessa pelo tema, não deixe de ler o livro Holocausto Brasileiro.
Publicado na edição nº 10099, de 4, 5 e 6 de março de 2017.