Já se abordou nesse espaço, algumas vezes, que a lei brasileira impõe a proprietários de áreas rurais o dever de preservar a vegetação nativa de parte de sua área. Nos biomas mais comuns em nossa região – cerrado e mata atlântica –, a lei federal determina que, em geral, 20% da área de uma propriedade rural seja preservada. Essa porcentagem pode ser alterada, a depender de alguns fatores, inclusive leis estaduais que podem prever porcentagens mais rigorosas, em certos casos.
Como mecanismo alternativo de cumprimento da lei, a lei federal de 2012, conhecida como Código Florestal, criou a figura da Cota de Reserva Ambiental (CRA). A CRA consiste em um “título nominativo representativo de área com vegetação nativa, existente ou em processo de recuperação”, como define a própria lei, que tem por finalidade justamente compensar deveres ambientais de proprietários que não possuam a porcentagem exigida por lei.
A ideia é simples: o(a) titular de uma propriedade rural que tenha área protegida superior ao exigido por lei – estaria, por assim dizer, em crédito com a obrigação de preservar –, adota um procedimento administrativo para comprovar tal condição. Se todas as exigências formais forem atendidas, esse título (a cota de reserva ambiental – CRA) é emitido e pode ser negociado com titulares de propriedades que estejam em débito com seu dever de proteção ambiental. A preservação ambiental vira, então, recurso financeiro para o(a) titular da área adicionalmente preservada.
Em geral, a possibilidade de emitir uma CRA passa pela regularização cadastral do imóvel rural, cabendo ao(à) interessado(a) apresentar: certidão atualizada da matrícula do imóvel, certidão negativa de débitos do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, e memorial descritivo do imóvel, dentre outros documentos. Aprovado o requerimento, a CRA indicará a extensão e a localização da área ali representada, com destaque para o bioma correspondente à área.
A propósito do bioma, no último 24 de outubro, o STF (Supremo Tribunal Federal) deu nova decisão na ação declaratória de constitucionalidade nº 42, sinalizando posição mais pragmática ao decidir questão bastante polêmica. Para o que tem relação com este texto – e deixado de lado o extenso e difícil “juridiquês” das discussões judiciais, em especial nas instâncias superiores –, o STF aparentemente mudou seu entendimento a respeito da interpretação do artigo 48, §2º do Código Florestal (que exige que o bioma seja o mesmo para a compensação de uma CRA).
Por ocasião do primeiro julgamento, em 28 de fevereiro de 2018, o STF reconheceu que as CRA eram constitucionais (permitidas, portanto). Mas a Corte Suprema adotou a chamada “interpretação conforme a Constituição” para o art. 48, § 2º, do Código Florestal, para: “permitir compensação apenas entre áreas com identidade ecológica”.
Com esse entendimento, as CRA só poderiam ser usadas para compensar áreas de reserva legal se a área excedente protegida (o “crédito” ambiental) fosse, nos dizeres do STF, originada de uma área com a mesma “identidade ecológica”.
A decisão foi bastante criticada porque não há conceito legal, jurídico, do que venha a ser “identidade ecológica” para fins de aplicação da decisão. Não bastasse, o Código Florestal prevê, expressamente, que a compensação observe o mesmo bioma. A decisão anterior, portanto, teria inovado na interpretação e, no entender de boa parte dos estudiosos do direito ambiental, gerado insegurança jurídica.
Tanto por isso, as primeiras impressões sobre a recentíssima decisão têm sido positivas, já que o STF aparentemente reviu o posicionamento para, agora, textualmente: “declarar a constitucionalidade do artigo 48, § 2º, da Lei federal 12.651/2012 (Código Florestal), mantendo o bioma como mecanismo compensatório previsto”.
A prudência recomenda aguardar a divulgação da integralidade da decisão no Diário Oficial para que se tenha a exata dimensão da decisão. De todo modo, o teor do resumo do julgamento é um bom indício de que a decisão trará mais segurança jurídica para o uso das CRA, que podem ganhar força no mercado como um importante mecanismo alternativo de proteção ambiental e estímulo a proprietários(as) de áreas rurais que vejam na preservação adicional de áreas mais uma forma de receita.
(Colaboração de Gabriel Burjaili, professor e advogado bebedourense).
Publicado na edição 10.885, de sábado a terça-feira, 2 a 5 de novembro de 2024 – Ano 100