Lambança delatória

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Gaudêncio Torquato 

O Brasil confirma que é mesmo o território do imponderável. Quem diria que um candidato a herói da moral, prestes a deixar um alto posto na estrutura do Estado, cairia nas malhas do descrédito em função de estabanada e possível atitude ilícita de pessoas do seu entorno, pior, de sua inteira confiança? Não era assim que se dizia do ex-procurador Marcello Miller, considerado braço direito do Procurador Geral Rodrigo Janot que, ainda na função de defensor da sociedade, teria se bandeado para o lado dos donos da JBS, ajudando-os a preparar a delação premiada que abalou os alicerces da política nos últimos meses? A se confirmar a ação dupla de Miller, cairia por terra o arcabouço lapidado por Janot com o fito de derrubar do cargo o presidente da República.
A polêmica gravação de Joesley fez uma conversa mantida com Michel Temer no Palácio do Jaburu transformar-se em bumerangue. Por conta de uma lambança praticada por ele, só explicável por ignorância tecnológica: o empresário não sabia operar um gravador, que gravou quatro horas de conversas suas com o diretor de Relações Institucionais da JBS, Ricardo Saud, (sem saber) momento em que trocaram ideias sobre aproximação com o Procurador Geral, atingiram a honorabilidade de ministros do STF, falaram sobre o papel de Miller na armação, da contratação de profissionais do sexo para cumprir tarefas, entre outras baixarias. O diálogo foi gravado dois meses antes da assinatura oficial da colaboração premiada.
A conversa apagada no gravador de Joesley foi degravada pela PF e os conteúdos enviados ao ministro do STF, Edson Fachin, que os encaminhou ao Procurador. Na sequência, Joesley se apressou a enviar áudios para a Procuradoria alegando esquecimento. Janot convocou a imprensa e fez uma comunicação pública. Não determinara investigação no gravador da conversa com Temer, apressou-se em fechar a delação, premiando Joesley com liberdade, tendo ao seu lado um procurador que fazia jogo duplo.
Se a gravação com o presidente Michel foi orientada pelo ex-procurador Miller o processo poderá ser anulado? Outra linha é a de que as provas não se inviabilizam, tese já abraçada por três ministros do STF.
O fato é que as conversas dos áudios escancaram promíscuas relações entre negócios privados e negócios do Estado e exibem métodos de ação de baixíssimo nível.
O acordo de delação será desfeito ou revisado. E eventual segunda denúncia de Janot contra Michel Temer perderá força. Janot pode pedir a prisão dos protagonistas Joesley e Saud. Delações poderão continuar a fazer parte do nosso arsenal judicial. Porém sem espetacularização.
Menos estardalhaço nas ações do MP deverá ser também um lume a guiar as ações da Polícia Federal. É possível que tenhamos mais adiante um repeteco de escândalos, mas a tendência é de que as operações em curso, envolvendo MP, Judiciário e PF, sob o apoio geral da sociedade, sirvam para limpar os entulhos que ainda entopem muitos canais da política.
Os repetidos erros que têm acometido a representação política não serão de todo eliminados, mas atenuados. O que se espera é avanço. É inadmissível que continuemos a operar a política nos moldes tradicionais sob a força dos grupos de interesse. Teremos na eleição de 2018 pelo menos dois estatutos que deverão funcionar como o marco de uma nova era: o fim das coligações proporcionais e a implantação da cláusula de desempenho. Teremos eleitos mais próximos das bases e um número menor de partidos.
Com nova feição política, será impraticável a montagem de máfias que agem no submundo da administração pública. Será desmontada a Tríade de Corrupção formada por burocratas, políticos e setores privados. A sociedade estará cada vez mais atenta para cobrar de seus representantes o compromisso que assumem perante o povo.

(Colaboração de Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato).

Publicado na edição nº 10178, de 16, 17 e 18 de setembro de 2017.