Negociando como animais

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Nas relações humanas a troca de favores sempre foi uma característica marcante a tal ponto de se tornar um negócio rentável. As mazelas políticas, cada vez mais presentes aos olhos da população, são exemplos crassos: mensalão, mensalinho, petrolão e outros tipos de propina distribuídos generosamente em troca de apoio à manutenção do poder, da fama e da riqueza. Embora o círculo político seja um dos mais visados ambientes para a propagação de favores, podemos observar que tal prática ocorre em vários outros segmentos sociais. Quanto mais poder, fama e riqueza se acumular, mais longe das filas, dos desacatos e da discriminação vai se estar. Para deleite de uns e tristeza de outros, a prática da troca de favores quase sempre é desigual, haja vista a situação social de nosso próprio país, que contrapõe a riqueza natural e a grande extensão territorial à fome da população.

Mas, de onde vem essa herança tacanha que permite ao homem escravizar o próprio homem? Quando é que ele aprendeu a fazer da gratidão, um verdadeiro negócio?

As regras da natureza

Inúmeros estudos científicos têm evidenciado que os hominídeos ancestrais do Homo sapiens já praticavam o cooperativismo como forma de manutenção da espécie. Sobreviver ao redor de tantos predadores certamente implicava na vida em grupo, a qual otimizava a vantagem mútua sem desestabilizar os interesses compartilhados. Assim sendo, características como a reciprocidade, a divisão de recompensa e a cooperação, há muito existem na natureza e não estão restritas à espécie humana ou qualquer linhagem ancestral.

Frans De Waal, professor de comportamento primata na Universidade de Emory, EUA, realizou diversos estudos com chipanzés e macacos-prego com o objetivo de determinar a existência de algum mecanismo operador do cooperativismo entre esses animais. Em artigo publicado na revista Scientific American há alguns anos, De Waal descreve relatos de longas observações do comportamento cotidiano dos animais, não só dos primatas, mas de peixes, crustáceos e morcegos, entre outros.

Falando dos animais

Vejamos o caso das fêmeas do macaco babuíno. Normalmente elas são muito ligadas aos filhotes, não só os seus, mas principalmente os das vizinhas. Para quebrar a relutância das mães e se aproximarem dos filhotes, as fêmeas curiosas fazem uma relaxante sessão de limpeza nas mães, enquanto observam de perto os recém-nascidos e por vezes chegam a tocá-los. As curiosas “pagam” para estarem ao lado dos bebês. O mais interessante dessa relação é que quanto menor o número de recém-nascidos, maior o “preço cobrado”, ou seja, maior o tempo de limpeza requerido pelas mães. Alguma similaridade com a relação oferta e demanda dos humanos?

A fila do peixe

Existe uma espécie de peixe limpador denominada Labroides dimidiatus que se alimenta de parasitas dos peixes maiores. Cada peixe limpador estabelece o seu “limpa-peixes” (como o nosso lava-jato urbano) num recife de coral para onde a sua clientela se dirige, com o objetivo de se livrar dos parasitas. O limpador mordisca a boca, o corpo e as nadadeiras do peixe maior (cliente), limpando-o e alimentando-se simultaneamente. Muitas vezes o trabalho do limpador torna-se tão intenso que se forma fila nas cercanias do recife. Interessante é que se o peixe cliente tiver que esperar muito na fila ou perder a confiança no peixe limpador (por vezes o limpador trapaceia retirando tecido bom), nunca mais ele aparece naquele “limpa-peixes”.

O fator de desequilíbrio

Embora negociações e cooperativismo existam em abundância na natureza, nenhum estudo conseguiu evidenciar qualquer tipo de distúrbio que viesse a causar um desequilíbrio explícito entre as espécies animais.  Não se sabe de fato se os animais entendem o significado dos favores dados e recebidos e se existe algum tipo de relação de obrigatoriedade entre eles. O que impressiona é que, mesmo num nível de QI dito baixo, a natureza por si só consegue manter-se em equilíbrio.

Na esfera humana, em que pese a tão propalada civilidade, o desequilíbrio é o carro chefe nas negociações, o que nos coloca uma dúvida irresistível: afinal, que inteligência é essa do homem?

(Colaboração de Wagner Zaparoli, doutor em ciências pela USP, professor universitário e consultor em tecnologia da informação).

Publicado na edição 10.627, de 27 a 30 de novembro de 2021.